Comprei meu exemplar de o nosso reino na Livraria Cultura do Conjunto Nacional. O próprio autor participaria de um bate-papo. Não queria correr o risco de ficar sem um autógrafo, comprei logo um que eu ainda não tinha. Autografado, o livro ficou parado uns dias, sem data marcada. A única coisa que me chamava para a leitura era o título. o nosso reino… Como sempre nos bons encontros, Valter Hugo Mãe logo passou a conversar comigo pela voz de uma personagem menor, que havia ido à África, estivera na guerra de Angola e de lá trouxera impressões tremendas. “… em angola fica-se com a cabeça muito magoada… Quando se vai à guerra, nunca de lá se sai…”
O livro é autodiegético, ou seja, o narrador é também a personagem principal e relata, em primeira pessoa, suas próprias experiências. E o puto tem um nome lindo que só nos deve ser revelado por ele próprio, lá pra depois do meio do livro (é um crime revelar antes, já que a revelação em si é uma das partes mais bonitas da história). Esse menino-sem-nome-até-a-pág-174 nos apresenta sua pequena aldeia portuguesa, tendo o mar a permear todo o cenário.
“eu, uma criança tonta e ingénua,
a procurar deus numa terra onde mandava o diabo”
Nessa vila litorânea vive pouca gente, aparentemente atrofiada por anos salazaristas, esquecida na ignorância, no preconceito e no fanatismo religioso de uma época em que não havia outra opção. Os rituais católicos se misturam a exorcismos e profusões constantes de santos e amuletos.
“… que as coisas desta vila eram o anúncio do fim do mundo…”
“… tudo estava ali para acabar…”
Há uma vertente poética e pagã em todo o texto, mas principalmente na figura do “homem mais triste do mundo“, uma personagem alegórica, ninguém menos que o coveiro da aldeia. A vida do menino é marcada pelo medo desse homem, pelo pavor do padre e o terror da morte, a qual tenta esconjurar com rezas e decisões desesperadas. A angústia gera no peito e no imaginário do menino o desejo de ser santo. Mas os sacrifícios para alcançar a santidade são tantos que sua vida vira um tormento, levando-o a extremos como o suicídio.
“…fui percebendo a reincidência dos pecados e toda a fragilidade humana…”
O menino tem uma admirável capacidade de observação, mas isso não lhe rende qualquer entendimento das coisas confusas do mundo de Deus. Sem saber como entender sua mãe a enlouquecer, seu pai a beber ou sua tia cândida a deixar a solteirice, o menino angustiava suas dúvidas e sua solidão.
“… a aflição de não saber o que deus queria fazia-me hesitar…”
Os acontecimentos se envolvem com o mundo fabuloso. E particularmente, eu adoro toques fantásticos, ainda mais quando a fantasia vem moderada. Neste livro, o diabo chora em um afresco de igreja; certa noite é abreviada e some do tempo antecipando o dia; o menino voa por alguns momentos impressionando toda a gente; galinhas põem ovos sem parar; um bebê demora doze meses a nascer; há uma ressurreição; entre outras maravilhas.
O autor, nascido em Angola e criado em Portugal, ficou conhecido por escrever seus primeiros romances com letra minúscula e pontuação mínima, reduzida a vírgulas e pontos finais – outro detalhe que muito me agrada. Inclusive, é por isso que o título também segue escrito em letra minúscula. Depois ele deixou esse “jeito” e conquistou muito mais notoriedade no mundo literário, dizem. Só sei que eu já escrevi como ele, mudei e revisei e alterei mil vezes os textos, e sabe? Temos a mesma opinião: a capitularidade traz uma carga, uma responsabilidade à palavra que por vezes poderia ser evitada. Mas a Meretíssima Gramática não gosta muito disso. Sigamos.
“… falávamos de como se é feliz quando se aceita o destino…”
o nosso reino é o primeiro de quatro livros dedicados ao tema ciclo da vida, sendo este o da infância. Publicado em Portugal em 2004, aqui no Brasil o livro teve sua primeira edição só em 2012, oito! anos depois. O autor define: “Uma interpelação à figura de Deus, uma espécie de encosto de Deus à parede, a ver se ele responde. O livro é todo à volta do que há e do que não há, e do que se pensa ou do que se quer que exista.”