Uma vez tive um amigo húngaro. Ele era triste por muitas causas, mas não as dizia. Em silêncio vivia só em sobrado antigo de família, reforma toda dele. Ali espantosamente criava uma lontra de verdade, nada selvagem, mas bastante indiferente para um animalzinho de estimação. Chamava-se Dore.

Era bem uma mancha escura a deslizar em aquário maximizado, construído especialmente para ela. Em cela perfeita, Dore subia e caía como um só confete só, sem alegria, motivo, cor. Um animal que não sorri.

Se sozinha, saía fácil e molhava o assoalho doméstico com seus movimentos encharcados. Saltitava feito rato aquático. Talvez por isso, não se exibia a ninguém, talvez nem mesmo ao dono, que tampouco comentaria se a visse fora d’água.

Quando perguntei da alimentação, me apontou o freezer. Não abri, esperei. Então me disse que mantinha ali seus bagres. Lembrei que era por certo um tipo resistente o peixe da preferência de Dore. Quis contar que sabia que demoravam a morrer, que tinham a cabeça dura de osso, bigodes de gato e pintinhas de estampa. Soaria infantil, como minha memória de bagres se debatendo dentro de outro freezer, horas depois de lá serem postos. Demoravam a morrer. E só mortos poderiam alimentar Dore.

Meu amigo a amava. Mas isso também não dizia, já que quieto era um modo de amar mais forte. Dentro d’água isso parecia não importar. Dore não percebia qualquer desnível em seu fluir de águas. Enquanto o homem que a criava se reclinava a secar com toalhas o empoçado de todo o chão, a lontra observava em seriedade.

Certa vez meu amigo idealizou que um dia, lá no incerto, faria um aquário maior, bem maior. Suas ideias não estavam claras, mas havia resolução. Talvez fosse bem este o problema: falta de espaço. Fosse para nados maiores ou socialização com outras lontras, fosse por vaidade de ter mais por onde ir… Essa era a questão da sua indiferença.

Dore bocejava, entediada de sentir.

Os elaboradíssimos planos e projetos de amplificação do aquário em tanque na própria sala tomou toda a cabeça de meu amigo. Tal como a lontra, ele já não diferia seus sentimentos húmidos. Seguia febril no calcular projecional.

Nos picos de concentração, me informou que a pele das lontras já fora utilizada para fazer talismãs. Nem a mais séria superstição faria meu amigo ferir a pele da sua lontra, já que nem mesmo chegava a tocá-la. Não porque fosse arisca. Eles apenas não se viam diretamente.

Qualquer lontra é capaz de passar horas com seus filhotes, brincando nas mais fantásticas acrobacias. Mas não sabe relacionar-se ao seu possuidor.

Ela vive na terra, mas sua morada é sempre próxima da água. Quase anfíbia, se sente bem nos dois ambientes. A lontra é a personificação da feminilidade: esguia, suave e graciosa. A grande coquete.

Se quer criar uma lontra, talvez precise reavaliar e compartilhar as riquezas de sua vida. A lontra pode dizer que precisa expressar melhor suas refinadas qualidades, pode requerer mais espaço.

De tanto viver, um dia Dore morreu silenciosa. Meu amigo viu o corpinho escuro no fundo do aquário. Disse não ter chorado. Se já não era de conversa, depois nunca mais falou. Foi como se a lontra, sua Dore, nunca tivesse existido. O piso todo passou a secar melhor.

No lugar do aquário, empurrou e ajeitou um sofá tão tremendo quanto certo. Depois de uns dias já não se percebia a mudança. Deixei de perguntar, de buscar com os olhos. Sabia que a ausência de uma lontra devia arder mais.