O italiano Antonio Tabucchi faz, em Requiem (1991), uma declaração de amor a Lisboa, cidade que adotou para viver e onde morreu; e sobretudo ao português, idioma no qual escreve este romance. Num estado entre a realidade e o sonho, seu protagonista deambula pelas ruas da capital portuguesa num tórrido domingo de julho. Sabe vagamente que tem tarefas a cumprir; entre elas, um encontro marcado para o meio-dia com o poeta Fernando Pessoa. No percurso errático em que vivos e mortos se encontram, ele revê pessoas do passado e tenta desatar alguns nós de sua vida. Alcança, assim, a medida exata entre o humor e o drama, numa obra impecável.

Num domingo de verão, um homem está lendo o Livro do desassossego debaixo de uma amoreira numa Quinta de Azeitão e, de repente – por um sortilégio, por uma alucinação encontra-se em Lisboa. Está um dia tórrido, a cidade está quase deserta. O homem começa a percorrer a cidade à procura de pessoas e coisas que desapareceram da sua vida (um amigo, uma mulher, o pai, um poeta, uma casa, uma pintura), dos quais quer despedir-se pela última vez. Mas no seu percurso vai encontrar, alucinadamente, mortos e vivos no mesmo plano. O livro fala da morte quase com alegria, é um bizarro ‘requiem’ e simultaneamente uma errância, um sonho, uma extravagância. Trata-se também de uma homenagem a Portugal, um percurso lisboeta, um ato de afeto do escritor estrangeiro que quis escrever esta obra em português.

No posfácio, escrito pelo próprio Tabucchi, o autor fala da dificuldade de escrever em uma língua que não a sua natal e conta de um sonho que tivera com seu pai, no qual este falava-lhe em português.

ver: As Tentações de Santo Antão

 

Pensei: o gajo nunca mais chega. E depois pensei: não posso chamar-lhe ‘gajo’, é um grande poeta, talvez o maior poeta do século XX, morreu há muitos anos, tenho de o tratar com respeito, ou melhor, com respeitinho. Mas entretanto começava a aborrecer-me, o sol dardejava, o sol do fim de julho, e pensei ainda: estou de férias, estava tão bem lá em Azeitão, na quinta dos meus amigos, por que é que aceitei este encontro aqui no cais?, tudo isto é absurdo. E olhei aos meus pés a silhueta da minha sombra, e também me pareceu absurda, incongruente, não tinha sentido, era uma silhueta curta, esmagada pelo sol do meio-dia, e foi então que me lembrei: ele tinha marcado às doze, mas talvez quisesse dizer doze da noite, porque os fantasmas aparecem à meia-noite. Levantei-me e percorri o cais. Na avenida, o trânsito tinha parado, passavam poucos carros, alguns com chapéus de sol no porta-bagagem, era tudo gente que ia para as praias da Caparica, estava um dia quentíssimo, pensei: o que faço eu aqui no último domingo de julho?, e acelerei o passo para ver se chegava o mais rapidamente possível a Santos, talvez no jardim estivesse um pouco mais fresco.

O jardim estava deserto, estava só o homem dos jornais em frente da sua banca. Aproximei-me e o homem sorriu. O Benfica ganhou, disse radiante, já viu as notícias? Fiz sinal que não, que ainda não tinha visto e o homem disse: foi um jogo noturno em Espanha, um jogo de beneficência. Comprei A Bola e escolhi um banco para me sentar. Estava a ler como se tinha passado o lance do jogo que tinha levado o Benfica a marcar o golo da vitória contra o Real Madrid, quando ouvi dizer: bom dia, e levantei a cabeça. Bom dia, repetiu o jovem de barbas que estava na minha frente, precisava da sua ajuda. Ajuda para quê?, perguntei eu. Ajuda para comer, disse o rapaz, há dois dias que estou sem comer. Era um rapaz dos seus vinte anos, de blue jeans e camisa, que me estendia timidamente a mão como se me pedisse esmola. Era loiro e tinha duas grandes olheiras. Dois dias sem tomar droga, disse eu instintivamente, e o jovem replicou: é a mesma coisa, também é comida, pelo menos para mim. Em princípio sou a favor de todas as drogas, disse eu, leves e pesadas, mas só em princípio, na prática sou contra, desculpe, sou um intelectual burguês cheio de preconceitos não posso aceitar que você faça uso de drogas neste jardim público oferecendo uma imagem desoladora do seu corpo, desculpe mas é contra os meus princípios, talvez eu pudesse admitir que você se drogasse na sua casa como se fazia antigamente, na companhia de amigos inteligentes e cultos ouvindo Mozart ou Erik Satie. A propósito, acrescentei, gosta do Erik Satie? O Rapaz Drogado olhou para mim com ar espantado. É um amigo seu?, perguntou.