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Vai alta no céu a lua da Primavera

Alberto Caeiro - Fernando Pessoa

Vai alta no céu a lua da Primavera
Penso em ti e dentro de mim estou completo.

 

Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.
Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.

 

Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo,
E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores.
Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,
Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher flores,
Isso será uma alegria e uma verdade para mim.

 


6-7-1914
O Pastor Amoroso”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993). – 90.

O Ano da Morte de Ricardo Reis

José Saramago

Personagens

Ricardo Reis – personagem principal, heterónimo de Fernando Pessoa;
Fernando Pessoa – aparece em fantasma e fora o “criador” de Ricardo Reis;
Lídia – Empregada de limpeza e interessada nos últimos acontecimentos de Portugal e no resto da Europa;
Marcenda – jovem hóspede do hotel com a mão esquerda paralisada.


Em finais de dezembro de 1935, Ricardo Reis chega de barco a Lisboa, vindo do Brasil onde esteve dezasseis anos a viver. É o reencontro com a sua cidade, ficando alojado no Hotel Bragança na Rua do Alecrim, não sabendo ainda por quanto tempo lá vai ficar. Sem planos definidos, Ricardo Reis é uma personagem solitária que vai observando e apreendendo a realidade da cidade, do país e do mundo, sem se envolver diretamente, antes colocando-se de fora.

No entanto, o cemitério dos Prazeres onde está sepultado Fernando Pessoa falecido em 30 de Novembro de 1935, é o primeiro local que Ricardo Reis visita mal chega a Lisboa. No primeiro dia do ano de 1936, quando a euforia do novo ano é vivida lá fora e Ricardo Reis já se recolheu ao seu quarto no hotel Bragança, Fernando Pessoa (ou o seu fantasma) visita-o pela primeira vez e avisa-o de que só poderão ter mais nove meses para se encontrarem e explica que tal como quando estamos no ventre das nossas mães não somos ainda vistos, mas todos os dias elas pensam em nós, após a morte cada dia vamos sendo esquecidos um pouco “salvo casos excepcionais nove meses é quando basta para o total olvido”.

O “Senhor Doutor Reis” como é tratado pelos empregados e hóspedes do hotel é um homem solitário, embora goste de almoçar em pequenos restaurantes pedindo ao empregado que não levante o prato à sua frente e deixe cheios o seu copo e o do seu companheiro imaginário. Gosta de observar e imaginar histórias sobre alguns hóspedes que jantam e frequentam o hotel e cria uma familiaridade por vezes forçada com o gerente – Salvador – com Pimenta que lhe carrega as malas e com Lídia a empregada que lhe limpa o quarto e lhe leva o pequeno almoço. Por outro lado, sendo alguém que se instala durante algum tempo no hotel sem ocupação nem ligações familiares ou sociais conhecidas, é observado não só pelo gerente e pelo empregado do hotel, mas também pela polícia política que quer saber as motivações daquele estranho doutor Ricardo Reis que regressou a Portugal vindo do Brasil. As notícias que lê todos os dias nos jornais para se pôr a par do que se passa no mundo e em Portugal pintam um retrato idílico de um país em que o salazarismo começa a fazer o seu caminho. O país da ideologia da família unida e feliz, em paz, em confronto com as convulsões que se vivem na vizinha Espanha e no Brasil. O país da sopa dos pobres e das obras de caridade em todas as paróquias e freguesias. O país onde se morre de doença e de falta de trabalho. O país dos milagres de Fátima e da devoção ao chefe, arregimentando os seus seguidores na Mocidade Portuguesa, na Legião e em outros instrumentos de propaganda como a Obra das Mães pela Educação Nacional. O país dos filhos de pais incógnitos. O país da discricionariedade e da devassa da vida privada, dos interrogatórios e da intimidação sem quaisquer motivos, o início da triste história da PVDE/PIDE. No fim do interrogatório à saída da António Maria Cardoso, Ricardo Reis sentiu um fedor a cebola que exalava Victor, o informador. Mas também noutros momentos esse fedor rondava por perto.

Lisboa, a cidade de Pessoa, a cidade onde Ricardo Reis veio para morrer, é uma cidade cinzenta e triste em que a chuva cai impiedosa. O Carnaval também é molhado e sem graça. No Verão, o calor é sufocante. A condizer com o ambiente de suspeição e desconfiança do Estado Novo, a cidade é mesquinha, coscuvilheira, intromete-se na vida dos outros. Seja primeiro no hotel Bragança, ou mais tarde quando Ricardo Reis aluga um andar na Rua de Santa Catarina, as vizinhas espreitam, conjeturam, mexericam, imiscuem-se. Até para os dois velhos que se sentam junto à estátua do Adamastor, aquele novo morador de Santa Catarina não deixa de ser um motivo de interesse para matar as horas de ócio e de conversa. Felizmente para Ricardo Reis, daquele segundo andar há uma vista deslumbrante para o Tejo.

Em Espanha, depois da vitória das esquerdas nas eleições é para Lisboa que fogem e se refugiam os detentores de riquezas, aguardando a reviravolta que não tardará com o golpe fascista liderado por Franco. Na Alemanha e na Itália, os ditadores lançam os seus instrumentos de propaganda e preparam os seus seguidores para um dos períodos mais negros da história da humanidade. No Brasil o comunista Luís Carlos Prestes é preso. As notícias dos jornais portugueses dão conta de que no estrangeiro Portugal é visto como o país que finalmente vive um período de paz e prosperidade.

E agora, as duas personagens femininas que se relacionam com Ricardo Reis. Lídia – a musa das Odes de Ricardo Reis – e Marcenda são duas personagens centrais nesta obra e neste período da vida de Ricardo Reis. Como é apanágio de Saramago, as suas heroínas são sempre mulheres fortes e decididas. Lídia, empregada no hotel onde Ricardo Reis vai viver os primeiros tempos após a sua chegada a Lisboa, é senhora de si, apaixona-se pelo doutor Ricardo Reis mesmo sabendo das diferenças sociais que a impedem de poder ter uma vida social sem ambiguidades com aquele com quem se relaciona sexualmente. Marcenda, a jovem hóspede do hotel que todos os meses vem com o pai para uma consulta médica, encontra em Ricardo Reis uma pessoa mais velha que a trata como uma adulta e não como uma criança a quem se escondem verdades dolorosas.


Adaptação para o cinema

“O Ano da Morte de Ricardo Reis” é realizado por João Botelho, que viu na obra e na época uma ponte para a atualidade.

Para o realizador, “1936, é um ano terrível. É muito parecido com o nascimento dos populismos, dos nacionalismos, o nascimento do fascismo, a guerra civil espanhola a tudo o que hoje está a voltar. Parece que estamos a voltar à Idade Média, as guerras religiosas, o outro é que é o inimigo. E portanto é uma ideia de chamar à atenção”.

O ator brasileiro Chico Díaz interpreta o papel do protagonista, que se hospeda no Hotel Bragança, um espaço recriado em Coimbra. A rodagem termina em maio, mas passa ainda por Lisboa e pelo Entroncamento.

Estima-se que o filme esteja pronto no final do ano, 35 anos depois de Saramago ter dado vida e morte a Ricardo Reis.

 


José de Sousa Saramago 🇵🇹 (1922-2010) nascido em Azinhaga, Golegã, foi o escritor português galardoado com o Nobel de Literatura de 1998. Também ganhou, em 1995, o Prémio Camões, o mais importante da língua portuguesa. Saramago foi considerado o responsável pelo efetivo reconhecimento internacional da prosa em língua portuguesa. Através de parábolas sustentadas pela imaginação, compaixão e ironia, nos permite apreender continuamente uma realidade fugidia.

Ricardo Reis – Poesia completa

Este livro, organizado por Manuela Parreira da Silva, traz os poemas de Ricardo Reis, o mais clássico dos heterônimos de Fernando Pessoa. Refletindo um espírito rigoroso, defensor do autodomínio e da ausência de desejos como receita de sabedoria, as odes de Reis buscam recuperar a influência das civilizações grega e romana na poesia do século XX.

assinatura de Ricardo Reis

Ricardo Reis foi o segundo heterônimo criado por Fernando Pessoa, depois de Alberto Caeiro e antes de Álvaro de Campos — e é o mais clássico de todos eles. Suas odes refletem um espírito rigoroso, que defendia a ausência de desejos e o autodomínio como receita de sabedoria. A severidade de sua postura criou uma poesia precisa, de métrica calculada. “Poesia é uma música que se faz com idéias”, escreveu Reis, “e por isso com palavras.”

Para ser grande, sê inteiro: nada
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

desenho nas paredes da Casa Fernando Pessoa

14-2-1933

 

Ricardo Reis — vida dele

O Dr. Ricardo Reis nasceu dentro da minha alma no dia 29 de Janeiro de 1914, pelas 11 horas da noite. Eu estivera ouvindo no dia anterior uma discussão extensa sobre os excessos, especialmente de realização, da arte moderna. Segundo o meu processo de sentir as coisas sem as sentir, fui-me deixando ir na onda dessa reação momentânea. Quando reparei em que estava pensando, vi que tinha erguido uma teoria neoclássica, e que a ia desenvolvendo. Achei-a bela e calculei interessante se a desenvolvesse segundo princípios que não adopto nem aceito. Ocorreu-me a ideia de a tornar um neoclassicismo «científico» […] reagir contra duas correntes — tanto contra o romantismo moderno, como contra o neoclassicismo à Maurras. […]
– 1914? Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996, p. 385.