tag . índios

Nove noites

Bernardo Carvalho

Na noite de 2 de agosto de 1939, um jovem e promissor antropólogo americano, Buell Quain, se matou, aos 27 anos, de forma violenta, enquanto tentava voltar para a civilização, vindo de uma aldeia indígena no interior do Brasil. O caso se tornou um tabu para a antropologia brasileira, foi logo esquecido e permaneceu em grande parte desconhecido do público.Sessenta e dois anos depois, ao tomar conhecimento da história por acaso, num artigo de jornal, o narrador deste livro é levado a investigar de maneira obsessiva e inexplicada as razões do suicídio do antropólogo. Em sua busca obstinada pelas cartas do morto ou pelo testamento de um engenheiro que ficara amigo do antropólogo nos seus últimos meses de vida, o narrador é guiado por razões pessoais que não serão reveladas até o final do romance, mas que dizem respeito à sua experiência de criança na selva, à história e à morte de seu próprio pai.Nove noites narra a descida ao coração das trevas empreendida pelo jovem expoente da antropologia americana, colega de Lévi-Strauss e aluno dileto de Ruth Benedict, às vésperas da Segunda Guerra. A história é contada em dois tempos, na tribo dos índios krahô (interior do sertão brasileiro) e na combinação progressiva entre a busca pelo testamento do engenheiro e a pesquisa que o narrador vai fazendo em arquivos, atrás das cartas do antropólogo e dos que o conheceram na época.

Para escrever o livro, Bernardo Carvalho travou contato com os Krahô, no Estado do Tocantins, e foi aos Estados Unidos em busca de documentos e pessoas que pudessem saber algo sobre o antropólogo. A história de Buell Quain revela as contradições e os desejos de um homem sozinho numa terra estranha, confrontado com os seus próprios limites e com a alteridade mais absoluta, numa narrativa que faz referências aos romances de Joseph Conrad e aos relatos do escritor inglês Bruce Chatwin.


Personagens

* destinatários das sete cartas que Buell Quain escreveu antes do suicídio

 

  • Narrador-2-Manoel Perna: mora em Carolina, sertanejo, engenheiro, amigo dos índios, passa nove noite com Buell ouvindo suas histórias, inclusive a do fotógrafo, a quem escreve seu relato, foi destituído do cargo do posto indígena Manoel da Nóbrega, morre afogado no rio Tocantins.
  • Narrador-1-jornalista: pai antropólogo-aviador, considerava o Xingu um inferno, mora em São Paulo, fica obcecado pela história do etnólogo suicida, quer escrever um romance,

 

  • Buell Quain: etnólogo americano, chamado de “Cãmtwtyon” (presente + lesma) pelos índios, teve malária, aos 27 anos se suicida na floresta após se cortar e escrever sete cartas,
  • Fannie Dunn Quain: mãe de Buell, médica, tenta comprar o silêncio com filantropia
  • *Eric P. Quain: pai de Buell, médico, divorciado da mãe, vive em Seattle,
  • Marion Quain Kaiser: irmã de Buell, casada, tem um casal de filhos e vive em Oregon,
  • *Charles C. Kaiser: cunhado de Buell, pai dos sobrinhos,

 

  • Raimunda Perna Coelho:
  • Heloísa Alberto Torres: diretora do Museu Nacional, responsável pelos americanos no Brasil
  • Francisco Perna:
  • Velho Diniz: único krahô que conhecia Buell quando menino, pediu o gravador ao narrador,
  • Sabino Côjam e Creuza Prumkwyi: os intelectuais da aldeia,
  • *Ruth Benedict: orientadora de Buell, publica com a ajuda da mãe de Buell, dois livros sobre Fiji
  • Ruth Landes: jovem antropóloga judia de NY, vem ao Brasil para pesquisar os negros e o candomblé baiano, amiga de Buell a quem ele se expressava com mais liberdade.
  • Lévi-Strauss: tem pouco contato com Buell, aparentemente
  • *Ângelo Sampaio: delegado de polícia de Carolina,
  • Alfred Métraux: antropólogo suíço, especialista em LATAM, em viagem ao Brasil conhecer “Cowan”, homem misterioso de ombros largos que se embebeda e fala se sua sífilis.
  • Charles Wagley: antropólogo americano, gay, tem um irmão deficiente,
  • Bernard Mishkin: antropólogo americano de Columbia que tem fama de rancoroso, caluniador, que diz que Quain é um poeta que se obriga a ter relações homossexuais com negros.
  • Professor Pessoa: traduz as cartas de Buell,
  • *Thomas Young: reverendo, missionário instalado com a mulher em Taunay,
  • William Lipkind: antropólogo de Columbia,
  • *Margaret Mead:
  • Craviro: deu o nome indígena a Buell,
  • Justino Medeiros Aires: comerciante e fazendeiro, um dos “intelectuais”,
  • Mundico:
  • Zacarias: menino que cantava as canções da aldeia para Buell,
  • Luís Balbino: chefe da aldeia, assassinado no massacre um ano depois da morte de Buell,
  • João Canuto e Ismael: índios que acompanharam Buell até o local do suicídio,
  • Carlos Dias: banqueiro de Carolina
  • Balduíno: proprietário da fazenda Serrinha,
  • Raimunda: filha de Manoel Perna, vive em Miracema do Tocantins,
  • José Maria Teinõ: anfitrião do narrador 1, tem um filho de dez anos,
  • Antônia Jàtcaprec: mulher franzina e brava de José Maria,
  • Neno Mãhi: filho, foi atropelado,
  • Leusipo Pempxà: filho, intimida o narrador
  • Afonso Cupõ: pajé enorme,
  • Cajari: mulher do pajé,
  • Vicente Hintxuatyc: patriarca da aldeia,
  • Francelina Wrãmkwyi: mulher de Vicente,
  • Gersila Kryjkwyi: índia debochada, diz que o narrador vai esquecê-los,
  • *Fotógrafo: vive em NY, tira o retrato inesperado de Buell, é o destinatário das cartas de Manoel Perna

Municípios mencionados

Brasil:
Carolina, Afonso Pena, Cuiabá, Urupuxete, Imperatriz, São Paulo, Rio de Janeiro, Itacajá, Cabeceira Grossa, Miracema,

EUA:
Filadéfia, Bismarck, Nova York,

Viagens:
Fiji, Europa,

Outros:
Barbados, Bridgetown


Tribos indígenas

Trumai, Suyá, Kamayurá, Kayabi, Krahô, Canela, Gavião, Karajás, Nahukwá,

 


Temáticas

Suicídio, alteridade, incesto, antropologia,

Dois Caramurus

Dope will get you through times of no hope better
than hope will get you through times of no dope

 

Quando lhe disse que poderia ser pela carabina, não acreditou, ou não me entendeu. Girando o indicador como se explicasse a doideira, e assim também me apressasse, mandou que eu lhe traduzisse o que marcava o papel de seda. Apenas o que estava escrito. Desenrolei. Aquilo era para ser simples, reto, bem profissional. A arma que trazia era um modelo básico, já estudado, mas estava tão lustrada que caía solene. O dia, por acaso, era pra ser especial? Só minha tradução seria especializada para o dia. Aparentemente eu estava ali para mostrar o que aprendi. Para ler o que eu mesmo escrevera, agora em outra língua, oralmente bem. Na ponta do cano, precisávamos de um estrangulador, em jargão forte, sem chance de aliviar contexto algum. Busquei outro termo, outro tom; quis pensar mais esparramado, mas prático ele interveio.

Just read”, sua voz era seca, indutiva.

Li sobre os customized pipes e todos os cartridge cases com frieza. Ele não parecia impaciente, olhava tudo com calma. Como se estivéssemos em um treino. Um treino sem fins. Eu não poderia ser sua funcionária já que meu raciocínio estava todo focado no cuidado de não levar mil balas quentes no orgulho. Tinha que disfarçar, simular apreensão, não manter contato visual e conservar minhas mãos livres para uma reação, se eu viesse a ter. Se ousasse ter uma só reação que fosse… No entanto, apenas segurava o papel com as direções codificadas. Meus olhos em volta, famintos e cientes de que ali nada havia que os pudesse acalmar a fome de saídas.

A violência silenciosa me atordoava. Talvez fosse impossível continuar calando tantos pensamentos. Ele esperava de mim uma boa interpretação da etapa final. O papel dele era dar o último toque de um plano intricado, formado bem antes de ali estarmos, planejado para que assim pudéssemos contribuir. Ninguém pensa por si. Eu pensaria que ele era parte de uma engrenagem que me movimentaria, enfim. Esse é o sistema.

Os faróis iluminavam as banquetas, o fluorescente do meu tênis e suas falanges enluvadas, e ágeis, preparando mais um. Tudo era um cenário isolado, reservado aparte de todos os que pudessem dedar. Com vistas para o morreiro, todos os motivos concentrados em uma perspectiva difícil, mas mais alta e maior. Arrisquei.

Sem a cabeça do índio não dá…

Quase o bom slogan, motivo pelo qual gracejei pressão, sem citar a logomarca, símbolo tão caro a ele e aos outros de onde ele vem. Chamavam aquilo de procedência? Ele só queria um procedure. Claramente não apreciaria meu humor de ocasião. Talvez não entendesse. Dó de nada, não tinha; era toco. E parecia não ter qualquer pretensão de pagar pelos meus serviços tampouco. Eu seria claramente explorada. Ninguém está acima do bem e do mal, era o que eu pensava. Naqueles outros tempos, eu sempre queria pensar.

Don’t be such an animau”, me cortou em voz de desprezo.

Embora tenha dito a última palavra, a que designara meu tipo, em bom português, acentuando o final, como a mostrar que sabia diferenciar bicho de gente, l de u.

Ali estava ele em um test-drive patrocinado pela fama escura de cúpula, pela minha miséria de baixa e pelo acaso de cruzarmos alguns dos mesmos caminhos. O grupo assim designara em reuniões acontecidas há tempos que não nos cabia marcar. Tínhamos uma obrigação, uma prioridade, um esquema.

Mas por que eu esperava uma explicação? Ele bem abusaria da posição, do fato de ser gringo, e iria, zureta de brasilidades, abusar da minha língua. Só depois eu tentaria saber o que levara de meu. A posse é uma ilusão. Há pouca imanência no fluxo.

Havia sim um silêncio. E talvez por isso quando começamos a ouvir os assovios de pavio, soubemos que deram seis horas e seria possível estourar os caramurus que avolumavam o bolso da jaqueta. Levantou de súbito, piscou um olho e me enfiou na boca aquele que só seria o primeiro de muitos.

Come on, animalzinha”, quase sorriu.

Estava fresco, recém confeccionado. Acendi e entendi que ele saberia melhor. Não era confiança, apenas falta de alternativa e aromatização natural. Não sei quanto tempo ficamos a esperar, a fumar, a buscar um segundo sinal triplo que quadruplicasse a quintessência de algum sexto sentido de pelo menos uma das sete vidas que nos prestávamos a acreditar que teríamos. Não éramos gatos, mas estávamos sobre um telhado e nos estranhávamos ao ódio. Do mais puro que existe: o gratuito.

Ouvimos um estouro, era o primeiro.

Nossos olhos se rejeitaram, intolerantes. Fui pra beira da laje ver de que cor seriam os fogos… Sobre o morro, ao pé do céu. Num espaço de tom já claro, quis saber qual era bem a graça, a forma, o jeito de cair daquele fogo. Eu quis viver o que seria possível entender. Azuis, amarelos, vermelhos, violetas, verdes eram todos. Assim como os dedos que afirmavam em mim que ele estava logo ali, bem junto, junto o bastante para estourarem no meu peito as batidas do medo dele. Talvez eu ressoasse de volta. Talvez aquele fosse o serviço. Não pude pensar.

Como saber se entenderiam os sinais, se conseguiríamos sair? Nada mais indicaria o momento de ir. Só o sol, como um chefe, nos impelia a correr, a sumir, mas eu ainda aguardava seu chamado, que seria claro, certo. As direções espaciais estavam na cabeça de um dos índios, a minha. Ele sabia e devia pagar por isso. Mas também era ele quem devia guiar aquele cavalo motorizado com a frieza com que fizera fama. Eu queria ver. Agora ele tinha que provar.

Me apressou, mas não se moveu. Os olhos se fecharam em fenda gélida. Com o toque, eu soube que devia esperar, era ele quem diria o quando de tudo. Ele sabia onde estava, como o tempo corria e quanto eu custava. Por minuto. Restava saber como iria pagar. Ou se iria morrer antes disso. Eu precisava pensar mais rápido.

O fumaceiro se dissolveu acima dos barracos e mocós como o que eu vivia. E nada poderia fazer para proteger o quer que fosse da fúria de uma guerra muito maior que meus esforços e visões. Dali eu já não via nada.

Me puxou pela mão. Quando saí da impaciência, já estava a me manter sentada e abraçada a ele, sobre a moto musculosa que nos levaria embora antes que tudo explodisse nos ares. Um fogo de dor. O caminho se desenhou e ele não entenderia afinal.

Aquilo que soltáramos também era um sinal, claro e estourado mesmo, para outros como nós, só que mais espertos, mais instruídos, mais preparados, mais eles mesmos. No entanto, para o momento, nós, os dois caramurus, filhos do trovão, éramos “os únicos que não dão chabu”. Outro gracejo publicitário que ele não entenderia porque não era índio, não era daqui.