que não suportou meu cheiro assim tão de perto tão de verdade fala logo que a minha pele tem uma textura diferente eu tenho todos os dentes do sorriso mais provocador do mundo você nem me conhecia e eu já ria na rua na esquina na rede de domingo cuspindo os caroços da melancia na terra molhada eu sou do mato eu uso salto tão alto pra te humilhar pra te chamar pra dançar minha mãe fugiu com um homem que tinha o pau maior que o do meu pai e meus irmãos todos têm um jeito meio estranho eu acho que você gosta muito de mim da cicatriz na minha perna foi quando eu rasguei no arame eu adoro sua careca já te contei que dá pra ver a cabeça dá uma coisa estranha boa sei lá.

 

– Doeu?

 

Nunca senti dor nenhuma nem quando meu pai me meteu a mão na cara tudo por causa de uma saia e um batom a cidade é pequena demais as pessoas muito desocupadas mas eu não ligo não nunca liguei ele era um homem de tristeza por causa da minha mãe amor é assim mesmo acaba com a vida da gente.

 

-…

 

Porque você me ama e sabe que acaba mesmo mas eu não vou te deixar eu juro que vou ficar aqui te esperando chegar do trabalho e pular no teu pescoço pra contar como o gato comeu o pardalzinho de rua eu cozinho ovos muito bem e até sei fazer um batido de leite com Nescau que fica muito bom se eu estiver feliz mas o rádio você arruma pra que eu possa dançar descalça ali no meio do quintal com a mangueira louca molhando meu vestido ralo e as plantinhas que você ainda não tem mas eu sei fazer crescer todo tipo de planta

 

– Amor-perfeito?

 

Não essa não porque nunca soube mesmo mas tem uma que eu sei e sempre soube muito bem o nome eu não sei bem só sei que tem alguma coisa com vergonha

 

– Maria sem vergonha?

 

olha como você também sabe das coisas e eu que achava que você só sabia da minha falta de vergonha mas você sabe também da minha falta de amor

 

– Não precisa.

 

eu sei que não precisa você sabe que eu tô aqui porque eu sei que não preciso amar eu preciso só de um batuquinho no coração quando você olha assim pra mim e tudo gira direitinho a sala tá girando pra você também?

 

– Sim.

 

então tá girando mesmo porque eu vi que você não bebeu nada ficou só fingindo que prestava atenção no que eu falava de minissaia na tua frente você viu como a música tava alta e eu tava mais alta ainda com um poder na boca que me fez pedir pra você me levar pra casa

 

– você está na sua casa agora.

 

é eu sei eu sempre soube que eu ia estar em casa quando achasse alguém que se importasse com a cicatriz da minha coxa e você pensa que eu não percebi mas eu sei que a gente não meteu e que você é casado e me ama agora

 

– Eu te amo!

 

não diz nunca mais que você me ama porque eu sei e porque sua mulher vai ser tão infeliz mas eu vou te fazer tão bem e vou amar suas camisas vou descer das botas de couro e te esperar de chinelinhos na calçada com uma trança e quem sabe um dia a gente vá visitar meus irmãos no interior e você segure a minha mão no carro.

 

-…

 

o sol nasceu e tô aqui com a maquiagem borrada sem calcinha você precisa ir tem tantas coisas para resolver a noite foi tão brilhante tua gravata tem batom e você não precisa me pagar porque eu sei que tudo foi só conversa mas me aqueceu o coração você é meu amigo agora e daqui a pouco no almoço você vai rir e dizer que puta nenhuma tem amigo no mundo mas eu vou ser tua amiga até o dia que eu não tiver mais vida porque eu tava com tanto frio e você me deu seu paletó

 

– Fica quietinha…

 

aí você vai ficar com tesão vai procurar meu telefone nos bolsos e só vai ter a incerteza eu acho que não existo você acha que muito bêbada eu só queria que fosse verdade tudo isso.

 

– É verdade, meu amor…

 

 


Publicado na antologia de contos Contos da Terra, Contos da Garoa, em São Paulo, 2006.