Não sei bem como escolhi ler A Trégua de Mario Benedetti, o oitavo dos 25 livros da coleção Folha de Literatura Ibero-Americana. Me puxou pela mão, pelos olhos, e ingressei na leitura me sentindo confortável, sempre lidei bem com burocratas. E isto era tudo o que eu sabia da história de Martín Santomé, um personagem perdido na incapacidade de lidar com o tempo, perdido em sua própria passividade em relação à vida.

“O mais trágico não é ser medíocre, mas inconsciente dessa mediocridade; o mais trágico é ser medíocre e saber que se é assim e não se conformar com esse destino que, por outro lado (isso é o pior), é de rigorosa justiça.”

A história de um contador de meia idade, adoecido de pessimismo, não parece ser instigante. Eu não esperava que a ambientação seria descrita com tal sensibilidade e me senti, de fato, na cidade de Montevideo. Mario teve de viver em exílio na Espanha durante alguns anos da ditadura. Só pôde retornar ao Uruguai, em 1983. Ao contrário de Santomé, personagem que lembra a si próprio, ele tinha novamente um lar ao qual voltar.

“…Sozinho como um herói, mas sem nenhuma razão para sentir coragem.”

Linguagem franca, de fina ironia, mas sem jamais render-se à comicidade escrachada. Um livro com final justo (me parece).  A narração em primeira pessoa conduz o leitor a uma experiência definida por pobrezas morais e anseios de liberdade declinados pelo destino. Não gosto de historietas felizes, me soam falsas.  Sempre há a mancha da tristeza, do peso, nas histórias que me agradam. Mas nem todos os autores querem ou sabem retratá-la bem e de modo verdadeiro. Benedetti definitivamente descreve a mancha da tristeza com absoluta lucidez e conhecimento. Esbanja habilidade narrativa neste livro, envolve e convida a uma leitura realmente sem tréguas.

“… a quantos abismos leva o espontâneo!…”

O livro foi adaptado para o cinema pelo diretor Sérgio Renan e concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Assisti sem prestar muita atenção. Há na internet diversos textos que entregam um pouco o ouro do enredo. Mas também é verdade que muitos preferem ter uma prévia do que encontrarão na páginas de um livro como este. Bem, a melhor crítica, que está inclusive na contracapa da edição, creio que seja também a mais recente, de Cássio Starling Carlos, crítico da Folha, cujo trechinho reproduzo a seguir:

“Com suas rotinas unidimensionais, os burocratas oferecem material preciso quando a literatura tenta enxergar o que mantemos guardado no fundo de gavetas. Na abundante obra de Benedetti, Martín Santomé representa o apogeu do homem comum, órfão do sublime… Um livro fiscal em que se registram as operações sentimentais de um funcionário de contabilidade, viúvo na meia-idade e às vésperas da aposentadoria. A persistência da narração na primeira pessoa introduz o leitor numa experiência definida por misérias morais e anseios de liberdade e felicidade abortados por infortúnios… O pessimismo intoxicante da prosa de Benedetti não evita as iluminações poéticas. Tanto pior, pois logo se descobre que cada instante de elevação faz doer mais as quedas.”