Como ser as duas coisas de Ali Smith é um livro maravilhoso. Escrito de forma inovadora, tem histórias comoventes e, o melhor de tudo: está repleto de referências artísticas! Justamente a versatilidade da arte é o tema por trás das trajetórias de amor e injustiça que aqui se espelham dissolvendo gêneros, formas, tempos, realidades e ficções.

Com técnica análoga à pintura de afrescos, Smith cria uma original história de duplos, protagonizada pelo pintor renascentista dos anos 1430 Francesco del Cossa e uma jovem garota dos tempos atuais. O livro é composto por duas partes um, havendo edições que começam com a parte antiga e outras que iniciam já em tempos contemporâneos.

Parte UM: Georgia, uma adolescente de 16 anos que prefere ser chamada de George e viaja com a mãe para Ferrara, na Itália, para ver os afrescos de um pintor renascentista adorado por ela.

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Parte UM: o próprio pintor Francesco del Cossa, imaginado pela autora como uma menina, que assume a identidade masculina para desenvolver melhor o seu talento no século XV. Pouco se sabe sobre a verdadeira biografia dele.

Há discussões sobre arte, amor, gênero e sexualidade, morte e muito mais, além da edição inglesa ter uma ótima capa (uma fotografia que é mencionada no livro) e imagens da capa interna de Francesco del Cossa. A maior obra-prima – um elaborado afresco alegórico no Palazzo Schifanoia (que significa um lugar para se escapar do tédio) em Ferrara, na Itália, que também desempenha um papel importante no romance.

Uma história espelhada, de duplos, em que gênero, realidade e ficção se dissolvem e se misturam. O jogo genial que Ali Smith criou, histórias originais permeadas pelo universo da arte e do luto, que se conectam e se completam. O livro pode ser lido de duas formas, pois algumas edições foram encadernadas intencionalmente das duas formas, para que os leitores tenham experiências diferentes lendo o mesmo livro.


Santa Luzia e os Olhos

“tinha feito uma santa Luzia com mais ouro do que eu podia pagar na época : ela tinha olhos num raminho que carregava, olhos que se abriam na ponta do raminho como flores se abrem, que o grande Alberti escreve que o olho é qual botão de flor, o que me fez pensar em olhos que se abrem como plantas, que santa Luzia é a santa dos olhos e da luz e é normalmente vista cega ou sem olhos e muitos artistas lhe dão olhos mas não no rosto, preferem colocar numa salva ou na palma da mão dela – mas eu deixei ela ficar com todos os olhos, não queria privá-la de nenhum deles.” (p. 143)

por Francesco del Cossa


“It is a feeling thing, to be a painter of things: cause every thing, even an imagined or gone thing or creature or person has essence: paint a rose or a coin or a duck or a brick and you’ll feel it as sure as if a coin had a mouth and told you what it was like to be a coin, as if a rose told you first-hand what petals are, their softness and wetness held in a pellicle of colour thinner and more feeling than an eyelid, as if a duck told you about the combined wet and underdry of its feathers, a brick about the rough kiss of its skin.” (p. 42)

Aclamadas, discutidas e premiadas, as obras de Smith são uma verdadeira sensação literária da contemporaneidade. E este livro não é diferente. Na Inglaterra, vendeu 150 mil exemplares no primeiro ano — feito raro para um romance.