O Som e a Fúria era um livro que me intimidava porque eu nunca havia lido nada do Faulkner e ele usou técnicas narrativas sofisticadas e altamente complexas. Fluxos de consciência, brusca passagem cronológica, múltiplos narradores, pontuação subtraída, ares bíblicos e ingredientes de tragédia grega – tudo junto e misturado, literalmente!

Esse coquetel molotov fez deste livro uma das obras mais importantes da literatura do século XX e um exemplar fiel do universo sulista dos Estados Unidos de 1920. Mas sua difícil compreensão também torna O Som e a Fúria um dos livros mais abandonados. Precisei de várias semanas para estudar e entender o quebra-cabeças que Faulkner propõe. A leitura demanda tanta análise e atenção que seria extenuante tentar entender as várias ramificações da obra se eu não a lesse de uma só vez e relesse trechos e relesse e relesse de novo.

“as pessoas estão sempre prometendo coisas só para apaziguar a consciência”

Tendo o tempo como motriz, o livro trata da decadência de uma antiga família, os Compson, e subliminarmente também expõe o declínio de toda uma classe aristocrática. O que me encorajou, a princípio, foi saber tratar-se de uma história familiar, mais especificamente uma história sobre o declínio de uma família norte-americana e sulista.

O livro nos mostra o autor como uma espécie de mágico, que oculta o sentido central e faz aparecer o trajeto do modo e do tempo através das histórias. Um quebra-cabeças cujas peças nos são apresentadas aos poucos, fora de ordem e por vezes disformes.

A história geral trata do enfrentamento da dissolução da reputação da família. O romance é dividido em quatro seções de diferentes narradores e um apêndice. Publicado anos mais tarde em uma coletânea, Faulkner chegou a confessar a um leitor e fã que este apêndice funcionaria como uma chave para abrir toda a obra.

Pessoalmente eu já havia conseguido montar o esquema e quando cheguei ao apêndice, já estava completamente perplexa com a originalidade do autor. Embora eu tivesse pensado em várias formas para escrever sobre este livro, sinto ser impossível fugir da divisão que o próprio autor nos impõe:


PARTE I

“O azar não tem como fazer mal a ele”

A primeira parte é escrita sob a perspectiva inédita para época, e sua narrativa é desarticulada, com pulos cronológicos e imprecisão tonal. Através de um jogo de perspectiva muito rico e complexo, Faulkner nos leva para dentro da mente de Benjamin, o primeiro Compson a abrir o romance. Em primeira pessoa e por sintaxes incompletas, por vezes não lineares e de difícil compreensão, percebemos logo cedo que nosso narrador sofre de severas limitações mentais. É dia de seu aniversário de 33 anos, mas o fluxo de consciência de Benjy nos leva para o passado e nos traz de volta, quase sem pistas de em qual tempo estamos. A primeira parte do livro é considerada a mais difícil de ser lida, mas também é a que traz mais originalidade e desafio para a obra como um todo. Ao terminar a primeira parte, senti certo alívio por ver que a etapa estava cumprida e Benjy agora “se acalmaria”. Certamente a genialidade de Faulkner teve especial cuidado na criação e condução deste personagem, pois além de percebermos ternura e alta delicadeza na escolha lexical, é fácil entender a centralidade de Benjamim na problemática familiar. A mudança de seu nome, o fato de nunca, em nenhum momento do romance, Faulkner se referir ao problema mental de Benjy de maneira esclarecedora, o modo abreviado e respeitoso com que o autor passou por o trauma de Benjy ter sido castrado e outros detalhes da passagem me chamaram muito a atenção.


PARTE II

“Quando você se dá conta de que nada pode ajudar você – nem religião, nem orgulho, nem nada – é quando você se dá conta de que não precisa de ajuda nenhuma.”

A segunda parte lentamente nos apresenta outro filho, Quentin Compson, irmão mais velho e promessa de grande resolução de vida, pois ele vai para Harvard, é obcecado pelo conceito de virgindade e inocência de sua irmã Candance. O incesto atormenta as ideias de Quentin, mas é o ciúme que o faz perder a cabeça. Sua seção nos mostra, também de modo cronologicamente confuso, os eventos que levaram ao seu suicídio.


PARTE III

“… mas quando o sangue é ruim não adianta fazer nada…”

A terceira parte é sob o ponto de vista de outro irmão, Jason Compson, cuja vida lhe reservou algumas frustrações em relação aos esforços da família. Fúria, ódio e medo formam o tom dessa seção, que traz um personagem perturbado pela ganância e pela amargura. Também é uma parte bastante confortante, pois Faulkner retoma a pontuação e a narrativa linear, o que nessa altura do campeonato pode ser interpretado como um bálsamo! Eu adorei o personagem do Jason, normalmente o mais odiado, mas foi só na terceira parte que as coisas passaram a fazer sentido na história, então vem daí minha simpatia pelo irascível Jason.

“O senhor engana até mesmo um que é tão espero que nem ele dá conta da esperteza dele mesmo.”


PARTE IV

“… fazendo da irrealidade uma possibilidade, depois uma probabilidade, e por fim um fato incontestável, como costumam fazer as pessoas quando seus desejos se transformam em palavras.”

Na quarta e última parte, Faulkner introduz um narrador com um ponto de vista global, uma voz comunal, vendo tudo que acontece dentro da história. Algumas pessoas naturalmente esperavam que a quarta seção desse voz à irmã Compson, não seria então a vez de Candance nos contar sua versão da história? Mas a última parte enfoca principalmente Dilsey, uma das servas dos Compsons. Dilsey não fala em primeira pessoa, mas em terceira, pois ela carrega consigo a fala coletiva de um coletivo. O narrador omisso mostra a externalidade e objetificação da vida de Dilsey. É uma escolha narrativa bastante desafiadora, que foge do esperado e confere ao autor mais um mérito de originalidade e ousadia. Ao invés de nos distanciar do ponto de vista de Dilsey, nos aproxima de um modo muito peculiar, o que mostra a habilidade de Faulkner enquanto narrador, como na descrição de um novo brilho na fronte de Dilsey, durante suas atividades. Não somos levados a saber se é uma lágrima ou suor, mas é possível nos aproximarmos de um aspecto extremamente íntimo da personagem. Outra parte que considerei perfeitamente descrita é quando Dilsey está preparando pães para o café da manhã e ouve seu nome sendo chamado por D. Caroline da escada.

“Dilsey levantou a cabeça e olhou como se seus olhos pudessem ver pelas paredes”

É impossível falar sobre O Som e a Fúria sem um mínimo contexto histórico, afinal Faulkner se esmerava em reproduzir em seus romances a realidade do que vivia no Mississipi por volta de 1920. O sul dos Estados Unidos como cenário e fonte de suas criações lhe rendeu fama e também a criação inventiva de lugares particulares, criados e mantidos por si na literatura, onde suas leis e maneiras valeriam para retratar a vida real. Há inclusive mapas e descrições bastante detalhadas sobre as dependências e características desses condados e cidades. Como o condado de Yoknapatawpha County, Ikkemotubbe, na cidade de Jefferson, Mississipi, onde a aristocrática família Compson vivia.

A libertação dos negros, a subjugação feminina, a castração humana, o incesto, o clima pós-guerra, a ganância, a depressão de uma classe inteira que se montava em arrogância são temas costurados à narrativa de Faulkner que, num primeiro momento, pode ser erroneamente resumida em a “história de uma família”. Podemos afirmar que o grande personagem desta obra seja o tempo, o que lhe confere interesse universal.

“Mas isso seria uma solução simples demais para um Compson. Se não for complicado, não tem graça.”


SOBRE O TÍTULO

Faulkner foi muito além e trouxe também seu lado leitor na escolha do título. Referindo-se a um famoso solilóquio de MacBeth, de Shakespeare, podemos entender que com a falta de um clímax como núcleo do drama, somos levamos a ver a história toda sem o sentido da busca por um denominador central, assim como a passagem shakespeariana, O ato 5, cena 5 de Macbeth:

“Life’s but a walking shadow,
 A poor player that struts
 Frets his hour upon the stage
And then is heard no more:
It is a tale told by an idiot,
Full of sound and fury,
Signifying nothing”

Uma “história contada por um idiota”, no caso Benjy, através do qual a história dos Compsons abre o romance. A ideia pode ser estendida também para Quentin e Jason, cujas narrativas exibem suas próprias variedades de deficiência.

Fico imaginando os obstáculos que um livro como este possa ter enfrentado em 1929, quando foi lançado, já que hoje, mesmo depois de todo deconstrutivismo moderno e pós-moderno, ainda não conseguimos ouvir o som dessa fúria criativa com clareza. Gostamos da forma “começo-meio-e-fim”. Mas o que Faulkner propõe é um quebra-cabeças cujas peças são por vezes disformes e distintas. E cabe aqui um imenso elogio à tradução em língua portuguesa de Paulo Henriques Britto que beija o impecável e o impossível.

Em seu discurso do Prêmio Nobel de Literatura, Faulkner disse que as pessoas devem escrever sobre o que vêm do coração, verdades universais. Caso contrário, elas não significam nada.


SOBRE OUTRA EDIÇÃO ESPECIAL

Prevendo que muitos leitores poderiam ter dificuldades, Faulkner usou itálico em vários trechos para expressar a passagem do tempo e a confusão mental das personagens. Seu desejo era imprimir o livro com fontes e cores diferentes, mas a pouca tecnologia da época não pôde atender a vontade de Faulkner.

No entanto, a editora Folio Society reparou essa falta publicando uma edição especial e limitada do livro. Essa nova edição foi a primeira a publicar o livro impresso usando cores: 14 tons diferentes. O trabalho contou com a ajuda de dois especialistas na obra. Antes disso, apenas o site The Sound and the Fury tentou recriar a experiência de leitura dessa forma. Inclusive, esse site reúne diversos materiais para crítica e análise literária da obra.


ADAPTAÇÕES PRO CINEMA

The Sound and the Fury (2014) IMDB
Diretor: James Franco
Roteiristas: William Faulkner (novel), Matt Rager (roteiro)
Elenco: James Franco, Tim Blake Nelson, Scott Haze

A look at the trials and tribulations of the Compson family, living in the deep south during the early part of the 20th century.


The Sound and the Fury (1959) IMDB
Diretor: Martin Ritt
Roteiristas: William Faulkner (novel), Irving Ravetch & Harriet Frank Jr. (roteiro)
Elenco: Yul Brynner, Joanne Woodward, Margaret Leighton

Drama focusing on a family of Southern aristocrats who are trying to deal with the dissolution of their clan and the loss of its reputation, faith, fortunes and respect.