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Pequena oração para anjos caídos

Peter Bruegel + Lenore Kandel

muitos dos meus amigos são viciados
muitos dos meus parentes psíquicos tatuam revelações invisíveis em si mesmos
assinando seus manifestos à consciência etérea com pouco

cicatrizes de pegadas que se estendem da ponta do dedo até a ponta do dedo
uma religiosidade sangrenta semelhante ao colar sagrado de Kali com cinquenta cabeças humanas

Kali-Ma, Kali-Mãe; Kali-Ma, Kali-Mãe
muitos dos meus amigos estão ficando sem sangue, suas veias
estão desmoronando, levam meia hora para acertar

o sangue sussurra através de seus corpos, cantando seu próprio canto de morte numa voz de fogo, numa voz de geleiras, numa voz de areia que sopra para sempre sobre o vazio

Kali-Ma, lembre-se de dar a vida e também de dar a morte
—-Kali-Ma…
Kali-Ma, lembre-se que o desejo é de iluminação e não de esquecimento
—-Kali-Ma…
Kali-Ma, seus ossos estão ficando claros; ajude-os a voar
Kali-Ma, seus olhos ardem com a dor do fogo; ajude-os a ver
com visão clara

Kali-Ma, o sangue deles canta até a morte para eles; lembrá-los da vida
que eles nasçam mais uma vez
que eles deslizem sangrentos pelos portões do sim, que
eles relaxam as mãos nem tentam parar o movimento do fluxo agora

muitos dos meus amigos caíram no calor branco da única chama
que eles voem mais alto; que não haja fim para o voo


too many of my friends are junkies
too many of my psychic kin tattoo invisible revelations on themselves

signing their manifestos to etheric consciousness with little
hoofprint scars stretching from fingertip to fingertip
a gory religiosity akin to Kali’s sacred necklace of fifty human heads

Kali-Ma, Kali-Mother; Kali-Ma, Kali-Mother
too many of my friends are running out of blood, their veins
are collapsing, it takes them half an hour to get a hit

their blood whispers through their bodies, singing its own death chant in a voice of fire, in a voice of glaciers, in a voice of sand that blows forever over emptiness

Kali-Ma, remember the giving of life as well as the giving of death
—-Kali-Ma…
Kali-Ma, remember the desire is for enlightenment and not oblivion
—-Kali-Ma…
Kali-Ma, their bones are growing light; help them to fly
Kali-Ma, their eyes burn with the pain of fire; help them that they see
with clear sight

Kali-Ma, their blood sings to death to them; remind them of life
that they be born once more
that they slide bloody through the gates of yes, that
they relax their hands nor try to stop the movement of the flowing now

too many of my friends have fallen into the white heat of the only flame
may they fly higher; may there be no end to flight


In: Lenore Kandel, Word Alchemy, Grove Press, 1967


Lenore Kandel 🇺🇸 (1932-2009) conheceu Kerouac em São Francisco e este imortalizou-a numa cena de Big Sur: “é inteligente, leu muito, escreve poesia, estuda o Zen, sabe tudo…” Publicou dois livros: The Love Book (1966) e Love Alchemy (1967), antes de sofrer um acidente de moto em 1970 (com o seu marido na altura, o poeta e membro dos Hells Angels, Billy Frisch) que lhe deixou graves sequelas na coluna. O seu primeiro livro foi acusado de obscenidade e foi confiscado das livrarias; Lenore respondeu ao crescimento das vendas doando uma percentagem à associação de polícias aposentados. Foi a única mulher que leu no mítico Festival Human Be-In em São Francisco.


A Queda dos Anjos Rebeldes, The Fall of the Rebel Angels (1562), Museus Reais de Belas-Artes da Bélgica, Bruxelas.

It is different when you get to look and study a piece of work like this everyday. When on a daily basis you bend your fragile body over it and allow, you literally permit, you let it reflect you back. As in a routine. As in a fucking exercise. It is different when you begin to feel like a fallen angel yourself. The wings, you know. Not sure about the feathers, miss Dickinson, but definitely something that makes you believe you can fly.

 

Are We Dating?

“A conheci nos primeiros dias do ensino médio. Pensei… se existir amor à primeira vista, então foi assim quando a vi. E não foi nada sexual. Foi tipo preciso conhecer essa garota… Reconhecíamos a insanidade e a singularidade disso. Mas então mudamos tanto durante a faculdade que acho que… não sei se ela descartou tudo como algo do passado, mas realmente sinto falta da intimidade de ter alguém tão próximo e já não espero que isso aconteça novamente com ninguém, com qualquer outra amiga que eu tenha.”


“I met her during the first days of high school. I think…if there was love at first sight, then that is what it was like when I saw [her]. And it wasn’t anything sexual. It was just you know I have to know this girl… We totally acknowledged the insanity of it and sort of the uniqueness of it, at the time. But then we changed so much during college that I think we kind of…I don’t know if she kind of wrote the whole thing off as something in the past, but it’s something that I feel I really kind of miss the intimacy of having a friend that close and I don’t really expect it to happen again with anybody or any female friendship that I have.”


foto de 1890 de um dormitório da Vassar College
Are We Dating?: An Exploratory Study of Non-Sexual Passionate Friendships Between Women” – (Estamos namorando?: Um estudo exploratório de amizades apaixonadas não-sexuais entre mulheres)
tese de mestrado de Linda Christine Chupkowski, Smith University

Éramos amigos e nos tornamos estranhos

Friedrich Nietzsche

Amizade Estelar

“Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos nos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois barcos que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho; podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos — e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol, parecendo haver chegado a seu destino e ter tido um só destino. Mas então a todo-poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos, e talvez nunca mais nos vejamos de novo — ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é a lei acima de nós: justamente por isso devemos nos tornar também mais veneráveis um para o outro! Justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos — elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade. — E assim vamos crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na Terra.”


Fonte: Friedrich Wilhelm Nietzsche, in “A Gaia Ciência” – aforismo 279 / Editora Companhia das Letras, 2011 –

Imagem: La Reconnaissance infinie (1963) de René Magritte (reprodução)


Friedrich Nietzsche (1844–1900) foi um filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor prussiano do século XIX, nascido na atual Alemanha. Escreveu vários textos criticando a religião, a moral, a cultura contemporânea, filosofia e ciência, exibindo uma predileção por metáfora, ironia e aforismo.