Amizade Estelar

“Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos nos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois barcos que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho; podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos — e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol, parecendo haver chegado a seu destino e ter tido um só destino. Mas então a todo-poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos, e talvez nunca mais nos vejamos de novo — ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é a lei acima de nós: justamente por isso devemos nos tornar também mais veneráveis um para o outro! Justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos — elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade. — E assim vamos crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na Terra.”


Fonte: Friedrich Wilhelm Nietzsche, in “A Gaia Ciência” – aforismo 279 / Editora Companhia das Letras, 2011 –

Imagem: La Reconnaissance infinie (1963) de René Magritte (reprodução)


Friedrich Nietzsche (1844–1900) foi um filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor prussiano do século XIX, nascido na atual Alemanha. Escreveu vários textos criticando a religião, a moral, a cultura contemporânea, filosofia e ciência, exibindo uma predileção por metáfora, ironia e aforismo.