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Eles eram muitos cavalos

Luiz Ruffato

O título foi retirado do poema “Dos Cavalos da Inconfidência“, de Cecília Meireles, e não poderia ser mais pertinente para descrever São Paulo, a cidade das luzes e escuridões do Brasil. Lançado originalmente em 2001, o romance Eles eram muitos cavalos tornou seu autor num grande sucesso de público e crítica. Com uma voz literária original e arrebatadora, Luiz Ruffato retrata um dia na vida de São Paulo, combinando recursos de sua formação jornalística a inovações formais e estéticas. O romance, que chega neste relançamento à sua 11ª- edição, seria ainda vencedor dos prêmios APCA e Machado de Assis. Considerado pelo jornal O Globo um dos dez melhores livros de ficção da década.

O nove de maio de 2000 é um dia qualquer em São Paulo. Os habitantes seguem realizando pequenos e grandes feitos cotidianos, protagonistas de uma narrativa subterrânea, que representa, ao fim e ao cabo, o próprio tecido da cidade. Para captar essa polifonia urbana, Ruffato estruturou seu romance em 69 episódios, cada qual com registro e fôlego próprios, alternando entre poesia, discurso publicitário, música, teatro e prosa, instantâneos de uma cidade que só se move deixando para trás um rastro de esquecidos. Ao jogar luz sobre esses anônimos, o autor iluminou também as circunstâncias em que eles se confrontam, em atos que se alternam entre a solidariedade e a frieza. Eles eram muitos cavalos ainda é um retrato atual e doloroso da vida na grande cidade.


Luiz Ruffato 🇧🇷 (1961-) é um escritor brasileiro nascido em Cataguases, Minas Gerais. Seu romance Eles eram muitos cavalos, de 2001, ganhou o Troféu APCA oferecido pela Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Em 2011, com a publicação do romance Domingos Sem Deus, concluiu a pentalogia Inferno Provisório, Estive em Lisboa e lembrei de você e outros. Ruffato foi o organizador da antologia Nos Idos de Março, e vem se pautando pela denúncia dos males nacionais em seus livros atuais. Organizou também a antologia Fora da Ordem e do Progresso.

Dos cavalos da inconfidência

Cecília Meireles

Romance LXXXIV ou Dos Cavalos da Inconfidência

Eles eram muitos cavalos,
ao longo dessas grandes serras,
de crinas abertas ao vento,
a galope entre águas e pedras.

Eles eram muitos cavalos,
donos dos ares e das ervas,
com tranquilos olhos macios,
habituados às densas névoas,
aos verdes, prados ondulosos,
às encostas de árduas arestas;
à cor das auroras nas nuvens,
ao tempo de ipês e quaresmas.

Eles eram muitos cavalos
nas margens desses grandes rios
por onde os escravos cantavam
músicas cheias de suspiros.

Eles eram muitos cavalos
e guardavam no fino ouvido
o som das catas e dos cantos,
a voz de amigos e inimigos;
– calados, ao peso da sela,
picados de insetos e espinhos,
desabafando o seu cansaço
em crepusculares relinchos.

Eles eram muitos cavalos,
– rijos, destemidos, velozes –
entre Mariana e Serro Frio,
Vila Rica e Rio das Mortes.

Eles eram muitos cavalos,
transportando no seu galope
coronéis, magistrados, poetas,
furriéis, alferes, sacerdotes.

E ouviam segredos e intrigas,
e sonetos e liras e odes:
testemunhas sem depoimento,
diante de equívocos enormes.

Eles eram muitos cavalos,
entre Mantiqueira e Ouro Branco
desmanchado o xisto nos cascos,
ao sol e à chuva, pelos campos,
levando esperanças, mensagens,
transmitidas de rancho em rancho.

Eles eram muitos cavalos,
entre sonhos e contrabandos,
alheios às paixões dos donos,
pousando os mesmos olhos mansos
nas grotas, repletas de escravos,
nas igrejas, cheias de santos.

Eles eram muitos cavalos:
e uns viram correntes e algemas,
outros, o sangue sobre a forca,
outros, o crime e as recompensas.

Eles eram muitos cavalos:
e alguns foram postos à venda,
outros ficaram nos seus pastos,
e houve uns que, depois da sentença
levaram o Alferes cortado
em braços, pernas e cabeça.

E partiram com sua carga
na mais dolorosa inocência.

Eles eram muitos cavalos.
E morreram por esses montes,
esses campos, esses abismos,
tendo servido a tantos homens.

Eles eram muitos cavalos,
mas ninguém mais sabe os seus nomes
sua pelagem, sua origem…
E iam tão alto, e iam tão longe!
E por eles se suspirava,
consultando o imenso horizonte!
– Morreram seus flancos robustos,
que pareciam de ouro e bronze.

Eles eram muitos cavalos.
E jazem por aí, caídos,
misturados às bravas serras,
misturados ao quartzo e ao xisto,
à frescura aquosa das lapas,
ao verdor do trevo florido.
E nunca pensaram na morte.
E nunca souberam de exílios.
Eles eram muitos cavalos,
cumprindo seu duro serviço.

A cinza de seus cavaleiros
neles aprendeu tempo e ritmo,
e a subir aos picos do mundo…
e a rolar pelos precipícios…

In: Romanceiro da Inconfidência (1953)


Cecília Meireles 🇧🇷 (1901-964), foi poetisa, jornalista e professora, nascida no Rio de Janeiro e considerada umas das maiores escritoras do Brasil. Escreveu sobre educação e fundou a primeira biblioteca infantil do país. Publicou mais de 50 obras. Em 1938, recebeu o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras. Lecionou Literatura na UFRJ e na Universidade do Texas. Foi Doutor Honoris Causa pela Universidade de Delhi. Sua obra poética é um a busca do eterno, um trabalho do luto, com essências e valores transcendentais.