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A Resistência

Julián Fuks

Este é livro de muitas resistências. Um resgate familiar por meio de uma construção literária minuciosa e precisa. “Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado”, anuncia, logo no início, o narrador deste romance. O leitor se descobre de partida imerso numa memória pessoal que se revela também social e política. Do drama de um país, a Argentina a partir do golpe, desenvolve-se a história de uma família, num retrato denso e importante.

“Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado”

Adotado por um casal de intelectuais que logo iriam buscar o exílio em São Paulo, o menino cresce, ganha irmãos, e as relações familiares se tornam complexas. Cabe então ao irmão mais novo o exame desse passado e, mais importante, a reescritura do próprio enredo familiar. E ali somos levados a conhecer os desdobramentos emocionais da adoção ilegal de seu irmão.

O autor parece nos guiar pra cima e pra baixo, como se não soubesse bem porquê contar ou como se estivesse contando ao vivo, no exato instante em que lemos. Um exemplo está no final do capítulo 23 e início do 24. O que é dito, é também contradito. O eu que narra, anuncia um pacto de ambiguidade com o leitor: vai e não vai contar a história real do irmão; vai e não vai examinar os conflitos da família, vai e não vai discutir no próprio livro o gênero literário a que se está dedicando.

Quando afirma sua obsessão pelas Avós da Praça de Maio — que tanto buscam seus netos desaparecidos nos calabouços da ditadura —, o narrador diz a este irmão que, afinal, ele não está desaparecido, tem ele sua verdadeira e real família.

Idealizado para ser um híbrido autobiográfico, um outro termo discutido bastante é o da “auto-ficção”, Julián Fuks nos diz sobretudo que o romance não morreu. Ele resiste, como resistem os que lutam contra as ditaduras, como os que querem pertencer e não conseguem, como a mãe que não abdicou dos filhos; como este jovem escritor, sempre resistente ao fácil e ao dócil.

O autor quer fazer da literatura mais um discurso possível.

perspectivas narrativas a partir do eu filho, do eu irmão, do eu autor e do eu mesmo.

O título original “Um irmão possível” fica a deixa de quem seria o irmão possível.

A questão da herança do exílio, questões de identidade quase sempre desnecessárias, mas ao mesmo tempo, são quase involuntárias, ao falar da família ele fala dele mesmo.

As memórias do pai, da mãe, nem sempre eram concordantes, então essa margem lhe dá espaço para melhor trabalhar a ficção, a literatura. Inclusive quando ao final ele dá espaço para que os pais critiquem seu livro, que deem voz aos personagens que lhes cabem.

“Eu sei, nós sabemos que é um livro saturado de cuidado, carregado de carinho, eu sei que a duplicidade não se restringe a nós, que o livro é duplo em cada linha.”

na questão da adoção, sempre explícita inclusive as crianças desde cedo, sofreu um processo reversivo, tornando-se um tabu, o irmão não queria mais que se falasse disso.

premência da politica, é natural que a li tenha uma participação mais direta, mais eloquente, requer outro tipo de sensibilidade,

sintomático do descrédito de literatura, especialmente com a ficção.

As Meninas

Lygia Fagundes Telles

Lançado em 1973, no auge da ditadura militar, As Meninas é um dos romances mais famosos da escritora paulistana Lygia Fagundes Telles, tendo sido premiado com o Prêmio Jabuti, em 1974.  A União Brasileira de Escritores encaminhou à Academia Sueca a indicação de Lygia Fagundes Telles para o Prêmio Nobel de Literatura 2016 com unanimidade entre os diretores. Para Durval Goyos, presidente da instituição, “Lygia é a maior escritora brasileira viva e a qualidade de sua produção é inquestionável”.

Gostei logo de cara e li com relativa rapidez, acho que no máx. uns seis dias. Com uma técnica literária muito segura, a autora usa diferentes focos narrativos para contar a história de três universitárias que vivem em um pensionato: Lorena, Lia e Ana Clara. De enredo aparentemente simples, o contexto da obra nos revela implicações políticas, sociais e de gênero bastante ousadas e importantes para a época, mas ainda relevantes nos dias de hoje.

“É no trivial que está o trágico.”

Esse trio que forma as vozes do livro se alterna e se mistura, nos contando as problemáticas individuais das meninas aos poucos, pelas frestas das frases e dos acontecimentos. Há também uma voz narrativa mais gramatical que liga as partes, em discurso indireto, mas que em nenhum momento nos mostra mais do que as próprias meninas querem dizer. Ouvi algumas pessoas dizerem que acham a leitura difícil, confusa etc. Já eu, acredito que seja fácil identificar as vozes, pois há elementos de diferenciação bastante claros.

“Comecei a achar que Deus era simplesmente isso, um bricoleur de gente.”

O título merece atenção, achei que a Lygia foi totalmente feliz em sua escolha. Embora estejamos em contato com as histórias de jovens mulheres que cursam faculdade, têm independência social e traçam seus próprios destinos, o termo “meninas” lhes cai perfeitamente bem. Uma vez que mesmo ‘sabidas’, elas ainda sabem pouco e do pouco que sabem, criam todo um universo emocional, como fazem as meninas. E por ser um universo totalmente girlie, luluzinha até dizer chega, penso que algumas pessoas possam se cansar do fluxo de consciência, mas consegui me envolver sem nenhuma dificuldade. Aliás, esse livro pode ser super indicado para adolescentes.

“O horror que tenho de cueca, a começar pelo nome.”

Das três meninas, a minha favorita era Lorena. A personagem mais intelectual, sensível e articulada. Uma burguesinha complexada, virgem, idealizadora platônica e leitora voraz de romances, é ela quem aparece mais no livro, e a que interage melhor como as outras duas meninas, afinal seu dinheiro e sua influência funcionam como uma espécie de agente centralizador do grupo.

“Em meio das risadas notei qualquer coisa de dolorimento.”

Outra personagem é a Lião, apelido de Lia de Melo Schultz, que combinava-lhe muito bem, pois era a militante do grupo, a guerrilheira meio baiana meio alemã que se envolve com política de esquerda. Confesso que era uma personagem que me irritava um pouco por conta de um maneirismo que a Lygia soube usar muito bem na voz dela, tudo o que Lia dizia era acompanhando por uma interjeição “ô” e eu conheci algumas pessoas com essa mesma mania… Peguei cisma com Lia.

“Ana Clara contou que tinha um namorado que endoidava quando ela tirava os cílios postiços…”

E por fim, a terceira e problemática Ana Clara, chamada de Ana Turva pelas amigas. Ela é uma ruiva que aspira ascender na vida graças à sua beleza capa-de-revista, mas tem manias de grandeza, um passado tortuoso e traumático que a torna uma mentirosa compulsiva. Embora alegue ter um noivo rico, se envolve com um traficante e decai em um mundo de drogas e delírio, até que o inesperado lhe acontece.

“As ciganagens dos jovens têm qualquer coisa de heroísmo na falta de cálculo, no desprendimento.”

Abre-se então mais um viés por onde podemos analisar a amizade das meninas, pois o pensamento que fazem umas das outras não condiz com as atitudes que cada uma tem perante as amigas. As palavras e julgamentos se amenizam pessoalmente, como na vida real em sociedade. E eu acredito que esteja aí o segredo dos relacionamentos desta obra.

“Felicidade é isso é se preparar calculando tudo ponto por ponto. Estruturar.”

Minha edição veio com uma resenha de Cristóvão Tezza abarcando uma crítica tão excelente que depois dela parece não haver mais o que ser dito. Temos também um depoimento da própria Lygia, publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo no dia 12 de outubro de 1975, onde a autora menciona a importância de testemunhar e registrar determinado tempo.

“Liberdade é segurança.”

E, de fato, em certo momento da obra, a militante Lia lê um texto sobre as crueldades ocorridas durante a ditadura militar. Em um evento promovido pelo Itaú Cultural em 2011, Lygia conta que o relato lido pela personagem é, na verdade, a reprodução de um panfleto que denunciava as torturas sofridas. “E como poderia escrever um romance morno em pleno ano de 1970?”

“Não sei aguentar o sofrimento dos outros, entende?”

 


Outras Edições

Ah, preciso fazer uma ressalva quanto a capa desta edição que simplesmente não me pareceu ter nenhuma conexão com a temática do romance. Um barquinho de papel em uma sarjeta? Lembrei que a coleção feita pela Companhia das Letras está simplesmente bárbara, com obras a la Beatriz Milhazes nas capas. A coleção está mesmo linda:

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Adapção pro Cinema

Há também um filme inspirado na obra, também chamado As Meninas feito no ano 1995 e dirigido por Emiliano Ribeiro. Estrelando Adriana Esteves (Lorena), Drica Moraes (Lia) e Claudiz Liz (Ana Clara). No YouTube tem uma reprodução na íntegra. IMDB

 

 

 

 

 

 


Lygia Fagundes Telles 🇧🇷 (1923-), também conhecida como “a dama da literatura brasileira”, é uma escritora paulistana, considerada por acadêmicos, críticos e leitores uma das mais importantes e notáveis escritoras brasileiras do século XX e da história da literatura brasileira. Além de advogada, romancista e contista, Lygia tem grande representação no pós-modernismo, e suas obras retratam temas clássicos e universais como a morte, o amor, o medo e a loucura, além da fantasia.

Budapeste

Dividido entre duas cidades, duas mulheres, dois livros e dois idiomas, o ghost-writer carioca José Costa vai buscar refúgio em Budapeste e no idioma húngaro. Combinando densidade narrativa com um especial senso de humor, Budapesteconfirma Chico Buarque como um dos grandes romancistas brasileiros da atualidade.

Ao concluir a autobiografia romanceada O ginógrafo, a pedido de um bizarro executivo alemão que fez carreira no Rio de Janeiro, José Costa, um ghost-writer de talento fora do comum, se vê diante de um impasse criativo e existencial. Escriba exímio, “gênio”, nas palavras do sócio, que o explora na “agência cultural” que dividem em Copacabana, Costa, meio sem querer, de mera escrita sob encomenda passa a praticar “alta literatura”. Também meio sem querer, vai parar em Budapeste, onde buscará a redenção no idioma húngaro, “segundo as más línguas, a única língua que o diabo respeita”.

Narrado em primeira pessoa, combinando alta densidade narrativa com um senso de humor muito particular, Budapeste é a história de um homem exaurido por seu próprio talento, que se vê emparedado entre duas cidades, duas mulheres, dois livros, duas línguas e uma série de outros pares simétricos que conferem ao texto o caráter de espelhamento que permeia todo o romance, e que levaram o professor José Miguel Wisnik a afirmar que se trata de “um romance do duplo”.
Tenso e à vontade, cultivado e coloquial, belo e grotesco, Budapeste traz a perfeição narrativa de Estorvo e Benjamim e confirma Chico Buarque como um dos grandes romancistas brasileiros da atualidade.

O romance ganhou o Prêmio Jabuti de melhor livro de 2003 e o IV Prêmio Passo Fundo Zaffari e Bourbon de Literatura, em 2005.