Passado nos recônditos fiordes islandeses, este romance é a voz de uma menina diferente que nos conta o que sobra depois de perder a irmã gémea. Um livro de profunda delicadeza em que a disciplina da tristeza não impede uma certa redenção e o permanente assombro da beleza.

«Mais tarde, também eu arrancarei o coração do peito para o secar como um trapo e usar limpando apenas as coisas mais estúpidas.»

O livro mais plástico de Valter Hugo Mãe. Um livro de ver. Uma utopia de purificar a experiência difícil e maravilhosa de se estar vivo. Com pouco mais de 180 páginas, o livro segue um tempo próprio, analógico e sem imediatismos ou grandes plot twists: Valter Hugo Mãe pinta com cuidado o retrato do sofrimento infantil sob a neve sóbria e inacessível dos montes e fiordes islandeses. Halla é uma criança abandonada no frio de seu luto, enquanto a mãe explode em agonia e ódio, e o pai observa resignado.

“Sobre a beleza o meu pai também explicava: só existe a beleza que se diz. Só existe a beleza se existir interlocutor. A beleza da lagoa é sempre alguém. Porque a beleza da lagoa só acontece porque a posso partilhar. Se não houver ninguém, nem a necessidade de encontrar beleza existe nem a lagoa será bela. A beleza é sempre alguém, no sentido de que ela se concretiza apenas pela expectativa da reunião com o outro”. (pg. 40)

Não resta nada à menina senão cortar cada um dos cordões umbilicais que ainda a ligam à infância: promessas de se manter fiel aos sonhos da irmã são deixadas de lado pelo elo restante, que procura construir uma imagem de si mesma através dos destroços. Aos poucos, Halla aprende – com a ajuda de alguns insights do pai – que algo só pode existir caso haja outra pessoa para reconhecer esta existência. Repetindo o nome de Sigridur, a garota tenta a todo custo manter vívida a imagem da gêmea morta, para que ela continue a existir em sua memória. Se só podemos construir nossa individualidade tendo os outros como referencial, Halla chega à trágica conclusão de que deve construir quem é por exclusão a tudo que Sigridur representa.

“Com as mãos um pouco abraçando-me, confessei que me vinha ao coração uma vontade muito grande de partir o corpo. Alguém me afirmou que eu me viciara na duplicação. Não tinha identidade própria. Era uma aberração. Queria fugir. Quem quer fugir já metade foi embora. O Steindór disse. Sou gêmea da morte. Vivo com muito medo. Se a tristeza permitisse, estaria apenas em pânico. Sempre em pânico”. (pg. 85)