Aqui vamos tentar tratar do filme Blow-Up – Depois Daquele Beijo (1966), de Michelangelo Antonioni, e o conto As Babas do Diabo, escrito pelo argentino Julio Cortázar e publicado em 1959. Retirado do livro As Armas Secretas, “Las babas del diablo” inspirou Antonioni, Edward Bond e Tonino Guerra na concepção do roteiro para o segundo longa em cores e o primeiro falado em língua inglesa na filmografia do diretor.

O narrador em As babas do Diabo assume uma identidade onisciente no momento da escrita, criando um distanciamento entre o autor e o personagem. Dividido entre duas ocupações, “tradutor e fotógrafo amador nas horas vagas”, Michel encara o fotógrafo como uma espécie de alter ego, ora observador distante, ora participante das ações. Esta dualidade é refletida também nos instrumentos de trabalho, pois tanto a máquina de escrever quanto a fotográfica estabelecem uma relação simbiótica, uma dupla tentativa de eternizar o momento, seja no negativo, seja no papel. Prova disso é que o escritor de Cortázar “fotografa” com a máquina de escrever o voo dos pássaros e o movimento das nuvens – “…agora passa uma grande nuvem quase negra…”, ao passo que o fotógrafo de Antonioni congela com a máquina fotográfica a presença do casal no parque: “…o garoto surpreendido e interrogante, mas ela irritada, decididamente hostis seu corpo e seu rosto que haviam sido roubados, ignominiosamente presos numa pequena imagem química.”

Cortázar aparece entre as fotos de desabrigados em Blow-Up

A passagem “os fios da virgem também são chamados de babas do diabo” apresenta uma possível razão para o título do conto: a virgindade do menino, cuja inocência, ao que tudo indica, fora roubada após sérios abusos que sofreu pelo pederasta. Blow-Up não se ateve ao repugnante crime da pedofilia sugerido nas linhas de As babas do Diabo. Ao invés disso, retratou um suposto assassinato, talvez para facilitar o entendimento e a aceitação do público, ainda que ambos tenham se concretizado sem respostas fáceis para espectadores e leitores.


Julio Cortázar 🇦🇷 (1914—1984) foi um escritor, tradutor e intelectual argentino. Sem renunciar à nacionalidade argentina, ele optou por adquirir a nacionalidade francesa, em protesto contra o regime militar. Considerado um dos autores mais inovadores e originais de sua época, mestre da história, prosa poética e conto em geral e criador de romances importantes que inauguraram uma nova maneira de fazer literatura no mundo hispânico, quebrando os moldes clássicos através de narrativas que escapam à linearidade temporal. Seu trabalho viaja na fronteira entre o real e o fantástico.