Canção

No desequilíbrio dos mares,
as proas giram sozinhas…
Numa das naves que afundaram
é que certamente tu vinhas.

Eu te esperei todos os séculos
sem desespero e sem desgosto,
e morri de infinitas mortes
guardando sempre o mesmo rosto

Quando as ondas te carregaram
meu olhos, entre águas e areias,
cegaram como os das estátuas,
a tudo quanto existe alheias.

Minhas mãos pararam sobre o ar
e endureceram junto ao vento,
e perderam a cor que tinham
e a lembrança do movimento.

E o sorriso que eu te levava
desprendeu-se e caiu de mim:
e só talvez ele ainda viva
dentro destas águas sem fim.


Cecília Meireles 🇧🇷 (1901-964), foi poetisa, jornalista e professora, nascida no Rio de Janeiro e considerada umas das maiores escritoras do Brasil. Escreveu sobre educação e fundou a primeira biblioteca infantil do país. Publicou mais de 50 obras. Em 1938, recebeu o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras. Lecionou Literatura na UFRJ e na Universidade do Texas. Foi Doutor Honoris Causa pela Universidade de Delhi. Sua obra poética é um a busca do eterno, um trabalho do luto, com essências e valores transcendentais.