Depois de mais de uma década sem publicar nada, em 2013, Milan Kundera nos surpreendeu com um novo romance. Aclamado pela crítica, o novo livro despertou grande interesse nos leitores na França, onde logo figurou entre os best-sellers. O título, por si só, já chama a atenção, mas estamos falando de Kundera, um escritor elegante e complexo. Espera-se que a leitura gere diversos pensamentos e nos leve a outras leituras. Mas neste caso, acho que um mínimo de contexto é necessário. Vi muitas pessoas acharem o livro difícil. Outras, talvez levadas pela fama do autor, já se declararam fãs da genialidade dele e tal. Mas a verdade é que este é livrinho peso pesado, exige neurônios.

A festa da insignificância é uma trama curta, porém espirituosa, que se ambienta na Paris atual. Nela, Kundera nos convida a refletir sobre a banalidade de vida e o quanto nos apegamos às coisas sem significância.

A tradução para o português brasileiro é de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e a edição de capa-dura é da Companhia das Letras, a editora que publica Kundera no Brasil há muitos anos.

“Nós compreendemos há muito tempo que não era mais possível mudar este mundo, nem remodelá-lo, nem impedir sua infeliz trajetória para a frente. Havia uma única resistência possível: não levá-lo a sério.”

A obra coloca em cena amigos parisienses (D’Argelo, Alain, Ramon, Calibã e Charles) que vivem uma existência esvaziada de sentido. Outros personagens (Mariana, a empregada portuguesa; madame La Franck; Julie; Kalinin) se entrelaçam ao aparente nonsense e, mais uma vez, Kundera explora as histórias, permeando-as com filosofia e história. Há referências a Kant, Schopenhauer, Stálin…

Os personagens passeiam pelos Jardins de Luxemburgo, vão a uma festa, observam que as novas gerações não sabem quem era Stálin, e se perguntam o que está por trás de uma sociedade que coloca o umbigo no centro do erotismo.

“As pessoas se encontram na vida, conversam, discutem, brigam sem perceber que se dirigem uns aos outros de longe, cada um de um observatório situado num lugar diferente no tempo”

Para Schopenhauer, o mundo é apenas representação e vontade. Por detrás do mundo tal como o vemos não existe nada de objetivo, e que, para fazer existir essa representação, para torná-la real, deve haver nela uma vontade; uma vontade enorme que a imponha. Stálin declara que impôs a vontade de todos a uma única vontade, a sua.

“Já muitos anos antes, ele tinha começado a detestar aniversários. Por causa dos números que se colavam neles. No entanto, não conseguia esnobá-los, pois a felicidade de ser festejado superava nele a vergonha de envelhecer”

A obra é dividida em sete partes e os personagens são apresentados individualmente, e logo percebemos que todos fazem parte de um mesmo grupo. Alain é apresentado como um homem assombrado pela imagem da mãe, que o abandonou quando pequeno. Para ele, o erotismo do mundo se concentra no umbigo. E por consequência, a vida se resume ao umbigo, pois este é um detalhe que iguala todos os humanos, remete às origens, ainda que absolutamente inútil.

“Somente das alturas do infinito bom humor é que você pode observar abaixo de si a eterna tolice dos homens e rir dela.”

Ramon ensaia visitar uma exposição do Chagall, mas sempre desiste por causa da fila. Ele é convidado por D’Argelo para ir à sua festa de aniversário e vai apenas por compaixão, porque acredita que seu amigo está muito doente.

“(…) falar sem chamar a atenção não é fácil.
Estar sempre presente com sua palavra e no entanto,
continuar não sendo ouvido, isso exige virtuosismo (…)”

Calibã, cujo apelido vem de um personagem de Shakespeare, é um ator frustrado que se passa por garçon, inventando sua própria língua para que as pessoas o achem mais interessante.

“… o sentimento de inutilidade de sua língua trabalhosamente inventada e a melancolia começou a invadi-lo.”

Os personagens se preparam para ir à festa de D’Argelo e há um grande desânimo geral. Kundera mostra que não apenas essa festa é insignificante, como também a festa como metáfora da vida. A festa da insignificância fala da indiferença.

Kundera se desfaz em sarcasmo para denunciar a hipocrisia social, a elevação da tristeza, da solidão e da falsa doença para causar simpatia ou compaixão. E, ainda assim, tudo isso é vão. Por isso, o único personagem que passa pelo livro e é visto como bem sucedido é Quaquelique, que me remete ao homem “qualquer”, que consegue as coisas justamente por não chamar atenção ou expressar opinião relevante. Ele é o medíocre que vence na vida por evitar conflitos e se manter no senso comum. Sendo assim, o triste sentido da vida mostrado pelo autor é que ela é totalmente insignificante.

“Se sentir ou não se sentir culpado.
Acho que tudo depende disso.
A vida é uma luta de todos contra todos.”

Na forma de uma fuga com variações sobre um mesmo tema, Kundera transita com naturalidade entre a Paris de hoje em dia e a União Soviética de ontem, propondo um paralelo entre essas duas épocas. Assim o romance tematiza o pior da civilização e lança luz sobre os problemas mais sérios com muito bom humor e ironia, abraçando a insignificância da existência humana.

“Sabe, não tem nada pior que o tédio.
É por isso que mudo de companhia.
Sem isso, não existe bom humor!”

Mas será insignificante, a insignificância? Kundera responde a essa questão: “A insignificância, meu amigo, é a essência da existência. Ela está conosco em toda parte e sempre. Ela está presente mesmo ali onde ninguém quer vê-la: nos horrores, nas lutas sangrentas, nas piores desgraças. Isso exige muitas vezes coragem para reconhecê-la em condições tão dramáticas e para chamá-la pelo nome. Mas não se trata apenas de reconhecê-la, é preciso amar a insignificância, é preciso aprender a amá-la”.


Milan Kundera 🇸🇰 (1929 -) é um escritor tcheco, naturalizado francês. Autor de importantes obras, como A Brincadeira (1967), O Livro do Riso e do Esquecimento (1979) e A Insustentável Leveza do Ser (1984), que o levaram a se tornar um dos mais consagrados escritores do século XX. Ao longo dos anos 50, Kundera trabalhou como tradutor, escreveu poemas, ensaios e peças de teatro. Seus primeiros trabalhos poéticos foram pró-comunistas. Milan Kundera recebeu diversos prêmios.