ESte livro apresenta reflexões sobre religiosidade e identidade. Ao decorrer da obra uma revolução ocorre com Stephen Dedalus, que busca encontrar razão em meio a um mundo cercado por culpa. Retrato do artista quando jovem é uma obra limiar na trajetória do irlandês James Joyce (1882-1941). Com traços autobiográficos, esse “romance de formação” traz vários elementos que estavam presentes na coletânea de contos Dublinenses: o ambiente estagnado de Dublin (sua cidade natal), o peso asfixiante da religião católica e a questão da identidade nacional e cultural da Irlanda (com sua sempre incômoda subserviência à coroa inglesa).

Dublin, 1909

Mas, se os dois livros foram publicados no mesmo ano de 1914, as narrativas de Dublinenses foram escritas muito antes e ainda pertencem a um registro mais linear e realista, ao passo que Retrato do artista quando jovem já traz o germe do terremoto estilístico produzido por Joyce em Ulisses (1922) e Finnegans Wake (1939). Com fluxos de consciência e uma aguda descrição das convulsões interiores pelas quais passa o protagonista Stephen Dedalus (cujo nome remete a Dédalo, o fabuloso artífice da mitologia grega), a linguagem do livro vai mudando conforme ele amadurece, até ceder a voz (já no epílogo, em forma de diário) ao próprio personagem – que assim se liberta dos fantasmas da moral católica, da culpa por suas fantasias eróticas, do ambiente amesquinhado da família e da Irlanda, fazendo da própria literatura o instrumento para conquistar liberdade e autonomia.


Música

  • The lily of killney

Dividido em cinco capítulos e com fortes traços autobiográficos, esse romance apresenta passo a passo o amadurecimento intelectual e artístico de Stephen Dedalus desde quando ele era muito pequeno até a mocidade e, curiosamente, começa com uma estrutura que faz lembrar um conto infantil:

“Era uma vez e uma vez muito boa mesmo uma vaquinha-mu que vinha andando pela estrada e a vaquinha-mu que vinha andando pela estrada encontrou um garotinho engrachadinho chamado bebê tico-taco.”

1. Infância
2. Pré-adolescência e adolescência
3. Um tratado sobre o inferno e as penas eternas
4. Um tratado sobre a culpa católica e o começo da liberdade
5. Vida propriamente dita

Para quem quiser entender a trajetória da personagem, basta decifrar seu nome. “St. Stephen” foi o primeiro mártir cristão e Dédalo projetou e construiu o labirinto do Minotauro, contudo, após se desentender com o Rei Minos, acabou preso na sua própria invenção e só conseguiu escapar, fazendo asas com cera e penas. Pois essa também é a história de um menino católico, cheio de culpas e arrependimentos, criado para ser jesuíta e que ousou alçar vôo, traçando seu destino. Tornou-se um artista herético e libertário, capaz de muito jovem conceber uma teoria estética que nada mais é do que os fundamentos da obra de Joyce.

“… Você me perguntou o que eu farei e o que eu não farei. Eu lhe direi o que farei e o que não farei. Não servirei àquilo em que não acredito mais, quer isso se chame minha família, minha terra natal ou minha Igreja; e procurarei me expressar por meio de uma certa forma de vida ou de arte tão livremente quanto possa e tão totalmente quanto possa, usando em minha defesa as únicas armas que me permito usar: o silêncio, o exílio e a astúcia.”

“Uma alegria líquida e macia, como o ruído de muitas águas, derramava-se por sobre a sua memória; sentia no coração a doce paz dos espaços silenciosos, tenazmente esmaecidos por sobre as águas. A doce paz do silêncio oceânico; a doce paz das andorinhas voando através do mar escuro, por cima das águas oscilantes.”

“E falando, enrugava um pouco a testa sardenta e mordia, entre as frases, a ponta fina dum lápis”.

“Seu raciocínio era um crepúsculo de dúvida e de autodesconfiança clareado, às vezes, pelos vislumbres da intuição, por iluminações de um tão claro esplendor que, em tais momentos, o mundo desaparecia debaixo dos seus pés como se o fogo o tivesse consumido; …”

Como a descrição da angústia sentida pelo protagonista por medo da morte.
Joyce aborda ainda concepções de Shelley e Santo Agostinho, cria sua própria visão das coisas que o rodeiam (grifo aqui seu como sendo do auterego do autor, Delalus) e os debate com um amigo e nota-se aqui a riqueza de conhecimento e de pensamentos próprio de Stephen e que isso o faz ser visto com admiração pelos colegas, é notado como um verdadeiro ser pensante.
Faz-se crítica ao sistema católico desordenado da Irlanda e usa o tema como pauta de boa parte da narrativa.

“Da má semente da ambição todos os outros pecados mortais tinham saltado: orgulho de si próprio e desprezo pelos outros; avareza em guardar dinheiro para a compra de prazeres ilícitos; inveja daqueles cujos vícios não podia atingir; caluniosas murmurações contra os piedosos; voracidade em sentir os alimentos; a estúpida raiva em que ardia e nomeio da qual examinava o seu tédio; o pântano de espiritual e corporal indolência dentro do qual todo o seu ser estava atolado.”

“A narrativa tampouco é meramente pessoal. A personalidade do artista passa para a narração mesma, enchendo, enchendo de fora para dentro as pessoas e a ação como um mar vital. (…) A personalidade do artista, no começo um grito, ou uma cadência, ou uma maneira, e depois um fluido e uma radiante narrativa, acaba finalmente se clarificando fora da existência, despersonalizando-se, por assim dizer”

“O seu espirito, esvaziado de teoria e de coragem, ia tombando numa paz desinteressada”

“A sentença mais profunda até hoje escrita – disse Temple, com entusiasmo – é esta sentença, no fim da zoologia: A reprodução é o começo da morte.”

“Não servirei àquilo em que não acredito mais, chame-se isso o meu lar, a minha pátria, ou a minha igreja; e vou tentar exprimir-me por algum modo de vida ou de arte tão livremente quanto possa, e de modo tão completo quanto possa, empregando para minha defesa apenas as armas que eu me permito usar: silêncio, exílio e sutileza.”

“Sê bem-vinda, ó vida! Eu vou ao encontro, pela milionésima vez, da realidade da experiência, a fim de moldar, na forja da minha alma, a consciência ainda não criada da minha raça”

O livro ainda não possui a tuba canora e belicosa do Ulysses ou do Finnegans Wake. À medida que Stephen cresce, e isso só no original se apercebe, a musicalidade bem como a linguagem vão ficando nitidamente mais refinadas. Afora isso, a temática labiríntica do labirinto (tão explorada por Borges) tem seu cerne central aqui. Jean Paris faz uma análise muito bacana sobre este aspecto do livro. Stephen Dedalus, Dédalo, é preso em inúmeros labirintos ao longo de sua vida (chega até a ser Pasífae com sua vaquinha na colina [ou debaixo da mesa]) e consegue apenas reverter a situação a partir da visão quase que deífica da moça na praia. A partir daí ele é Dédalo que construirá labirintos. Tão intrincados que ele mesmo, como se vê no Ulysses, se enreda e se perde…

A técnica de composição do livro é digna de nota. Richard Ellmann faz um bom apanhado em sua biografia: o desenvolvimento embriônico do texto e das relações intersociais de Stephen vão sendo nitidamente vistas a partir da linguagem. Stephen sem opinião, formando uma junto com seu coração e sentidos. O livro se fecha com o diário de Stephen, uma forma escondida de monólogo interior que iria explodir no Terceiro Episódio (Proteu) do Ulysses.

A Portrait of the Artist as a Young Man: Amy Conroy e Paul Mescal em uma produção Rough Magic. Foto: Ste Murray