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15 Perdições da Doçaria Conventual de Coimbra

Os doces portugueses são tradicionalíssimos. Muitos, criados ou aperfeiçoados em conventos. E há variedades curiosas. Vamos conhecer a doçaria conventual de Coimbra: doces preparados por madres, freiras, clarissas e noviças da região central de Portugal. Neste sítio especial os confeitos ganharam toques românticos, poéticos e até picantes! Cada pormenor desta doçaria desperta o pecado numa deliciosa descoberta dupla – verbal e palatal. É gula e luxúria, juntas. Para comer e ler de joelhos.


🥚 Haja OOOOvos!

Gemas, açúcar e amêndoas = base da doçaria conventual portuguesa. Por vezes adiciona-se canela, pouca farinha e frutas cristalizadas. A criatividade e o talento das freiras, cuja rotina não se limitava a rezar e cuidar dos enfermos, possibilitaram inúmeras combinações diferentes, quase sempre com os mesmíssimos ingredientes. Os ovos sempre protagonizam as receitas. Nas casas religiosas, a doçaria conventual evoluiu graças aos excedentes de gemas. Portugal terá sido o maior produtor de ovos do mundo. Antes o mel era o principal adoçante, mas a partir da exploração da cana-de-açúcar brasileira, o açúcar passou a estar disponível, contribuindo para o desenvolvimento da doçaria.


Aperfeiçoamento do Receituário 📔

Nem todas as jovens recebidas nos mosteiros tinham vocação para a clausura. Normalmente iam obrigadas pelas famílias quando não arrumavam casamento ou para fugir de pretendentes indesejáveis. Essas “freirinhas à força” encontravam refúgio para as horas de solidão na cozinha do monastério, para onde levavam receitas de família. Para a evolução do receituário conventual terão contribuído ainda outras mulheres que entravam no convento – mocinhas nobres, de boas famílias, herdeiras solteiras, filhas segundas e viúvas ricas – não só pelo dote e pela proximidade do reino, mas também pelas receitas que traziam consigo. Os preparos se aperfeiçoavam e resultavam em doces novos, elaborados, rebatizados. Tal aconteceu por todo o país, mas Coimbra guarda ainda outra doce característica.


💞 Vai-e-vem de Doces e Versos

Desde o século XVI a cidade é povoada por estudantes, que flertam com noviças. Trata-se de uma tradição culinário-cultural que marcará a vida coimbrã até 1834, quando são extintas as ordens religiosas. Para as tertúlias, as religiosas sugeriam temas por entre as grades dos conventos e esperavam glosas dos estudantes capas negra, do outro lado. Se os versos agradassem, as freiras ofereciam recompensas dulcíssimas. Muitos galanteios passavam entre as grades no vai-e-vem de doces e versos. O formato e o próprio nome dos doces são sugestivos: maminhas de freira, cavaca alta, barriga de freira, encharcadas, talhada… Esses momentos de contato entre a vida conventual e a acadêmica, entre a doçaria e a poesia, ficaram conhecidos como Tardes dos Outeiros ou Abadessadas, onde participaram, entre outros, Antero de Quental, João de Deus, António Castilho e Almeida Garrett, que disse: “mui gulloso doce as madres nos davam”.


Veja detalhes de 15 doces conventuais tradicionais de Coimbra, delícias que até hoje deixam calouros e doutores de água na boca.

 


Maminhas de Freira

1 – Maminhas de Freira

Também conhecido por “manjar branco”, este lascivo doce do Convento de Celas surpreende não só pela forma cônica, mas também pelos ingredientes: peito de frango cozido, farinha de arroz e flor de laranjeira. Inusitadas, as maminhas costumam ser oferecidas em bases redondas de barro. Não confundir com as maminhas de noviça, que embora também sejam conventuais, são alentejanas. As típicas maminhas de freira coimbrãs, junto de outros doces, foram retratadas na singela quadrinha de Alberto Osório de Castro:

“O duplo manjar branco do seu seio,
Biquitos de um dourado de arrufada
Tinham mais mel e mais fino recheio
Que os pastéis de Tentúgal e a queijada”


Cavacas altas

2 – Cavacas altas

Existirá região portuguesa que não tenha uma receita própria de cavaca? Este docinho é mesmo popular. As de Coimbra distinguem-se pela generosidade. Repare no tamanho, é como se pedissem para receber recheio de frutas, creme ou sorvete. Por ser oca e seca, a cobertura de glacê da cavaca é fundamental para umedecer sua massa. A partir de ingredientes modestos é possível criar delícias que se prendem à memória.


3 – Pastéis de Santa Clara

Finos, os Pasteis de Santa Clara talvez sejam o doce conventual mais requisitado na cidade e a criação mais célebre do Mosteiro das Clarissas de Santa Clara, Coimbra. Outrora vendidos na roda da portaria do convento durante o dia de feira das Festas da Rainha Santa (padroeira da cidade), estes pastéis foram depois comercializados nas confeitarias da Praça do Comércio, onde a receita original se mantém. Mas a fama depressa transpôs fronteiras. Os doces delicados em forma de meia-lua, recheados de ovos e amêndoas, chegaram ao Porto, onde eram tradicionalmente vendidos ao domingo à tarde, pelas ruas da cidade.


4 – Lampreia de ovos

É sobretudo ao Mosteiro de Santa Clara que se atribui a origem da lampreia de ovos, um doce natalino imitando a forma de uma lampreia de rio, que é um peixe ciclóstomo de água doce, um tanto assustador, também parte da culinária regional. O doce é composto por capas e fios de ovos, decorados com frutas cristalizadas e confeitos de glacê. Normalmente era vendida em bonitas caixas decoradas com papel colorido. É um doce muito afamado, com presença marcada nas ceias de Natal.


5 – Barrigas de Freira

Nas diferentes receitas, encontramos quase sempre a trilogia “amêndoas-ovos-açúcar” e canela. A versão mais popularizada em Coimbra contém ainda doce de gila, tornando o recheio rico e de textura aprazível. Cada convento guardava a sua receita como um tesouro, sendo algumas transmitidas oralmente. Por isso, muito do patrimônio doceiro não terá chegado aos nossos dias, já que muitas receitas desapareceram com a morte das últimas freiras da época. Não confundir com as Barrigas de Freira de Anadia.


6 – Nevadas de Penacova

Outrora conhecidas como “Palermos Cobertos”, vieram do Mosteiro do Lorvão para Penacova, pelas mãos de uma criada das freiras desta casa religiosa. Os atributos visuais do doce – cobertura rígida em açúcar e cor neutra – escondem a massa fofa e a surpresa do recheio de ovos cremoso no seu interior. Sobre a data da fundação do Mosteiro do Lorvão não existe consenso: alguns investigadores situam-no no séc. XI, e outros consideram que já existiria no séc. VI, ou ainda antes. Começou por ser uma casa masculina, tendo mais tarde, no séc. XIII, passado a albergar a congregação feminina da Ordem de Cister. com a vinda de D. Teresa, que após a anulação do casamento com D. Afonso XI de Leão, veio viver para este mosteiro acompanhada pelas irmãs Sancha, Mafalda, Branca e Berengária, filhas de D. Sancho I.


7 – Pastéis de Lorvão

São uma das famosas criações das freiras do Mosteiro de Santa Maria do Lorvão, que contêm dois dos seus ingredientes preferidos: amêndoas, provável herança árabe na doçaria portuguesa, e canela, a conhecida especiaria oriunda do Ceilão (hoje Sri Lanka). Para além destes pastéis úmidos, tipo queijada, encontramos no receituário das monjas laurbanenses sobretudo doces de colher e “bolos ricos”, como beijinhos de freira, bolo podre de Lorvão, cavacas de Lorvão, e bolo das infantas. Os afamados doces do Lorvão conquistaram personalidades como o General Wellington que, aquando da sua estadia no mosteiro durante o período das Invasões Francesas, em 1810, muito apreciou os mimos doceiros das freiras.


8 – Pastéis de Tentúgal

Os palitos folhados terão sido criados por carmelitas do séc. XVI, que ofereciam o doce às crianças da aldeia, no Natal. De ingredientes “pobres”, mas pincelado à pena, e com a folha mais fina que papel vegetal, o pastel viria a tornar-se o símbolo de Tentúgal. Após o convento N. Sr.ª do Carmo fechar, o doce passou a ser feito pela única hospedaria entre Coimbra e Figueira da Foz. Ali ganharam fama entre os universitários, que os levavam consigo após o término dos estudos. Um deles era António Nobre, que buscava seus pastéis, esperando talvez, entre as folhas transparentes, resposta aos seus versos:

“Freirinhas de Tentúgal, passos lentos!
E o chá com bolos, dentro dos conventos!
Meu Deus! meu Deus! E eu sempre a errar no Mundo!”


9 – Arrufadas

Originária do Convento de Sant’Ana, é um bolo seco (tipo pão doce), de longa conservação, duplamente fermentado, em forma redonda (antigamente, tomava também a forma de ferradura) e com uma coroa no cimo. Este foi um doce que rapidamente se expandiu para além dos muros do Convento, e a continuação e difusão desta receita deveu-se às famosas “vendedeiras de Arrufadas”, que apregoavam o bolo nas ruas da Baixa e na Estação Velha. Na Páscoa, realizava-se um mercado no Largo de Sansão, onde as vendedeiras colocaram em linha os seus tabuleiros de Arrufadas, forrados de toalhas de linho de Almalaguês.


10 – Talhadas de Príncipe

Originárias do Mosteiro de Santa Maria de Celas e surgem como forma de reaproveitar as arrufadas secas e duras. São cobertas com doce de ovos e calda de açúcar, ganhando assim uma textura húmida e muito saborosa.


11. Encharcada

Preparada à base de ovos, açúcar e canela, a encharcada tem origens alentejanas mas foi copiada nos conventos de todo o país. Farta, é uma receita que rende e que deve ser servida em uma tigela de barro, para degustar de colher, aos bons bocados. Quente ou fria, a depender da estação, a encharcada é um doce caseiro, muito comum na mesa portuguesa.


12. Nabada

Um dos doces conventuais mais antigos de Portugal, confeccionado a partir do nabo. A nabada também pode ser acompanhar o pão, o queijo fresco ou curado e até virar recheio de tartes. Foram as freiras do convento beneditino de Santa Maria de Semide, que o habitaram de 1183 a 1896, que o conceberam à base de nabos, açúcar e amêndoas. As receitas mais antigas reportam o uso de almíscar, pau de canela, flor de laranjeira e água de rosas. Para saborear a Nabada, com sabor a amêndoa ou a noz, vai ter de se deslocar ao Restaurante Museu da Chanfana, no Parque Biológico da Serra da Lousã, em Miranda do Corvo.


13. Queijadas de Pereira

Desde 1513, no Convento das Ursulinas. A tradição é mesmo antiga e a receita passou de boca em boca. Na freguesia de Pereira, em Montemor-o-Velho, são várias as pastelarias e doceiras que se dedicam à produção destas suaves queijadas. O preparo é ainda muito artesanal, pois são recheadas e fechadas à mão, uma a uma. A tradição diz que, para fechar a massa, deve-se vincar sete bicos à volta do doce para acomodar bem o recheio. A massa leva apenas farinha, margarina e água morna. O recheio é de queijo fresco, açúcar e gemas de ovo. Depois de cozidas no forno, as queijadas de Pereira são empilhadas e embrulhadas, prontas para viagem.


14. Coscorel / coscorão

Ora, ora, além de deliciosa, esta receita de Natal tem um efeito visual fabuloso. E a composição dos ingredientes também  não fica atrás: leva 1/2 cálice aguardente e oito ovos. São eles os coscuréis, ou seja, filhós de forma, de flor ou floreta, como dizem a depender da região (ou pastelaria). E se em Portugal não há Natal sem canela, tampouco há Natal sem frituras doces. Estas filhoses são aromáticas e ainda podem levar calda e raspas de laranja. É necessária uma tradicional forma de metal com desenhos geométricos e recortes interiores para fritar a massa e fazer as filhoses.


15. Amores da Curia

Os amores da Curia surgiram pela mão da alemã Emília Wissman que veio para Portugal muito jovem. Originalmente de forma quadrada, são pasteis de massa folhada muito fina, recheada com ovos moles e polvilhados com açucar pilé, atualmente apresentados em forma de coração. Onde comer Amores da Curia? No Restaurante Nova Casa dos Leitões – Aguim, em Anadia.

 

 

 

 

Literatura sobre a Doçaria Conventual de Coimbra

“Na paleta dos sabores, os doces sobressaem com particular relevo. Temperam a boca depois dos salgados, dos acres, dos picantes, no final de uma refeição. Deliciam o corpo e adoçam o espírito em momentos de comemoração e de partilha. São mimos que se apresentam como dons, como oferendas.”

— lê-se no prefácio d’A Doçaria Conventual de Coimbra, livro de Dina Fernanda Ferreira de Sousa, que através de sua tese de doutorado, nos incita a degustar os doces conventuais de Coimbra através de sua avaliação e narrativa acadêmica.


Onde Comer em Coimbra

E como não poderia faltar, para além da doçaria conventual, fiz também um post com sugestões de restaurantes, cafés e tascas perfeitas para saborear as delícias típicas da cidade: Onde Comer em Coimbra


Outros Roteiros por Coimbra

Veja também o post Coimbra, a cidade dos estudantes para conhecer os melhores pontos e atrações turísticas da cidade. E confira o post com o Roteiro Poético por Coimbra para conhecer a cidade pelo olhar de diversos escritores portugueses.

 

Autoria

Julia Medrado (1985–), paulistana, vive em Coimbra – Portugal, é tradutora, publicista e mestre em Literatura e Crítica Literária. Graduada em Letras pela PUC-SP, é também especialista em Gestão de Projetos Digitais pelo SENAC. Presta serviços junto a redatores, revisores e tradutores; em 2010 criou a Tradstar e, desde então, se divide entre projetos, alguns literários e absolutamente pessoais, como este site que leva seu nome.

   

Roteiro Poético por Coimbra

Vamos percorrer alguns locais, no encalço de poetas portugueses que, vivendo, estudando ou apenas visitando Coimbra, dedicaram alguns poemas à cidade. Faremos, portanto, um roteiro poético por Coimbra. Iniciaremos o itinerário nos Arcos do Jardim Botânico e, parando em alguns pontos previamente combinados, vamos seguir até o Largo da Portagem. Em cada paragem, um ou outro poema relacionado ao local poderá ser apreciado. Ao final, passaremos a conhecer melhor a cidade e também alguns poetas portugueses, com a certeza que Coimbra inspira muitas palavras bonitas. Naturalmente, esta jornada poética coimbrinha é um excelente pretexto para ler poesia e turistar ao mesmo tempo. Vamos?

O itinerário foi feito a partir da coletânea EnCantada Coimbra, organizada por Adosinda Providência Torgal e Madalena Torgal Ferreira. Parte dos poemas vieram daí. A outra parte adveio de pesquisas na internet. A seleção, a ordenação e os grifos são meus.


Lista de Poetas do Roteiro Poético por Coimbra:

  1. Moirika Reker Gilberto Reis – poema-instalação –
  2. Manuel Alegre Arcos do Jardim | Torre de Anto
  3. Alberto de Oliveira Pelo Jardim Botânico… | Entrada nas aulas
  4. António Nobre
  5. Manuel Silva-Terra –
  6. David Mourão-Ferreira –
  7. D. Dinis –
  8. Vitorino NemésioCantigas de Coimbra
  9. António de Sousa –
  10. Eugénio de Castro –
  11. Mário Saa Ali à Sé Velha
  12. Vasco Pereira da Costa Largo da Portagem
  13. Miguel Torga – Portugal

1 – ogivas de melancolia no aqueduto

O ponto de partida do nosso roteiro é o Aqueduto São Sebastião, popularmente conhecido como Arcos do Jardim, dada a sua localização contígua. Mandado construir em 1570 pelo rei D. Sebastião para abastecer de água a Alta da cidade, o aqueduto aproveita o traçado de um precedente romano. O primeiro arco, chamado “arco de honra” difere dos demais, pois é rematado por uma cornija, na qual vemos o escudo de Portugal. Depois temos um detalhe baldaquino, assente sobre colunelos dóricos e coroado por cúpula e lanternim. A cada lado dos arcos vemos nichos com as imagens de São Sebastião e São Roque. Tantos detalhes não roubam o charme do jardim, que costuma estar sempre à risca. Na rotunda de acesso, podemos ler nos muros dos arcos um poema-instalação de Moirika Reker Gilberto Reis, que foi parte da Bienal de 2015. A natureza e a intervenção do homem ocupa um papel central na sua reflexão.

 

“Escutai!
Um vento morreu.
Não vos dais conta?
Somos jardineiros e não flores.”


Arcos do Jardim

de Manuel Alegre


Todos os dias sob os Arcos do Jardim
Todos os dias eu passava e nunca via
Senão arcos e arcos entre o não e o sim
Senão arcos e ogivas de melancolia.
Eram arcos no ritmo e na palavra
Por dentro da sintaxe e em cada imagem.
Todos os dias sob os Arcos eu passava
Todos os dias para a outra margem.
Eram arcos na rima e não havia
Senão arcos e grades e arquitraves.
Mas eu passava sob os Arcos e partia
Todos os dias eu partia com as aves.

 

Manuel Alegre 🇵🇹 (1936-) nasceu em Águeda. Estudou Direito na Universidade de Coimbra, tendo-se distinguido na oposição ao Estado Novo, vivendo exilado em Paris e na Argélia. Após o 25 de abril, regressou a Portugal, militando no PS, distinguindo-se em diversos momentos da vida política. Foi candidato à Presidência da República em 2006. A sua obra é extensa e traduzida em várias línguas.

2 – balouço do Seminário Maior

Bem corretinhos, vamos visitar rapidamente o balouço do Seminário maior para apreciar um poeta ligeiro que muito gosto faria de ver sua obra tratada em solo tal. De presente, ganhamos uma vista maravilhosa e uma venda poética bastante individual, que traz para o nosso roteiro um tom um bocadinho introspectivo, ainda que estejamos juntos nessa caminhada…

 

 

 

E tu baloiças pelos olhos dentro
Inundando de paisagens a ceguez

Daniel Faria 🇵🇹 (1971-1999) precocemente falecido aos 28 anos de idade, quando estava prestes a concluir o noviciado no Mosteiro Beneditino de Singeverga.

3 – toutinegras do Jardim Botânico

Partamos então como aves para este espaço verde, que é um dos favoritos da cidade. Com sua larga Alameda das Tílias a convidar a um demorado passeio pela Estufa Grande e pelo Fontanário. Se nos apetecer podemos esticar o passeio de contato com a natureza, para explorar a Mata do Jardim Botânico. No meio do bambuzal, encontra-se a singela capela de São Bento. E talvez seja possível descobrirmos afinal o que vêm a ser as toutinegras, pois o jardim frequentemente recebe estudantes e pássaros, ambos de espécimes cançonetistas.

Pelo Jardim Botânico…

de Alberto de Oliveira

Pelo Jardim Botânico, à tardinha…
É a hora ritual do sol poente,
Quando as tílias rescendem docemente
Na avenida cismática e sozinha.
Quisera ver raiar na minha frente
Alguma namorada Teresinha,
Cruzar no dela o meu olhar ardente,
Ter enlaçada na sua mão a minha.
Amam em cada ninho as toutinegras,
Chamejam, ao passar, as capas negras,
Como se a luz do amor as penetrara…
Tange um sino suave no convento…
E o sol exausto, em seu ocaso lento,
Acaba de morrer em Santa Clara.

Porta-Férrea da Universidade

E por falar em música, vamos estudar melhor a melodia da cidade. Todas as notas nos levam à Universidade, pois não? Nem sempre, mas neste caso, de certo que sim. Mas antes de entrarmos pela porta principal, a Porta-Férrea, como bons alunos que somos, vamos ainda seguir o trajeto que muita história nos conta. Sejamos boas ovelhas ou anhos, assim como o poeta deste ponto sugere que são os estudantes daqui.

Entrada nas aulas

de Alberto de Oliveira

Porta-Férrea! Gerais! Via Latina!

Nomes que só dizê-los é bastante
Para voltar ao tempo de estudante
E trajar outra vez capa e batina!

Do claustro dos Gerais a poeira fina,
Que as capas enfarinha, é semelhante
À que mais tarde, pela vida adiante,
Será neve das cãs na fronte em ruína…

À porta da aula, limiar do aprisco,
Por nós espera, gótico ou mourisco?
Pedro Penedo, o mítico Doutor.

E cada qual de nós, ovelha ou anho,
Acode pressuroso ao seu rebanho,
Chamado pela vara do pastor.

Alberto de Oliveira 🇵🇹 (1873-1940) foi um poeta português nascido no Porto, frequentou a Universidade de Coimbra, onde conheceu António Nobre e Eugénio de Castro. Das polêmicas literárias desses tempos, nasceram os movimentos simbolista e decadentista. Palavras Loucas é a sua obra mais conhecida. É considerado o fundador do neogarrettismo, defendendo, sob a inspiração literária de Almeida Garrett, o nacionalismo e a recuperação da literatura popular, bem como o abandono de modelos culturais estrangeiros.

Escadas Monumentais

Seguindo pela Rua Larga, encontramos a estátua do rei D. Dinis, fundador da Universitas Conimbrigensis, olhando do alto das Escadas Monumentais da Universidade. Logo à direita, o Museu de História Natural antecede o Aqueduto São Sebastião,

Coimbra
de Manuel Silva-Terra

Às 9h da manhã, um homem
Subia as escadas monumentais com uma
Borboleta poisada no ombro.
Nunca vi ciência mais exata.

 

 

Manuel Silva-Terra 🇵🇹 (1955-) nasceu em Orvalho, localidade do concelho de Oleiros. Estudou Filosofia na Universidade de Coimbra. Destacou-se como poeta e editor da Editora Licorne. Fragmentos, Campos Magnéticos, Condomínio, ou Lira, o seu último livro, são algumas das suas obras. Reside em Évora onde é professor do ensino secundário.

Polo I – Estátua do Dom Dinis

Fala Apócrifa de Dom Dinis
de David Mourão-Ferreira

Toda a vida cantei.
(Ou foi pedir socorro?)

Jogral,
Em meu pinhal,

O próprio vento canta.
Mas sei, enfim, que morro
Desta fome que é ter
Por mulher
Uma Santa.

Jogral,
em meu pinhal,
já só o vento canta.


David Mourão-Ferreira 🇵🇹 (1926-1996) Nasceu em Lisboa. Licenciado pela Universidade de Lisboa, onde foi professor catedrático, foi Secretário de Estado da Cultura e diretor do jornal A Capital, já desativado. Foi um dos responsáveis pelas bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi ensaísta, romancista, poeta, crítico literário e tradutor. Vencedor de vários prêmios literários, de entre a poesia destacam-se: A Secreta Viagem, Do Tempo ao Coração», Cancioneiro do Natal, Matura Idade e Ode à Música.

 

(Ai flores, ai flores do verde pinho)
de Dom Dinis

Ai, flores, ai, flores do verde pino,
se sabedes novas do meu amigo?

Ai, flores, ai, flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado?

Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo?

Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que mi à jurado?

Vós me preguntades polo vosso amigo?
E eu ben vos digo que é sano e vivo.

Vós me preguntades polo vosso amado?
E eu ben vos digo que é vivo e sano.

E eu ben vos digo que é sano e vivo
e seerá vosco ante o prazo saido.

E eu ben vos digo que é vivo e sano
e seerá vosco ante o prazo passado.
Ai, Deus, e u é?

D. Dinis 🇵🇹 (1261-1325) Nada menos que o 6º rei de Portugal, filho de D. Afonso III e de D. Beatriz de Castela, nasceu a 9 de outubro de 1261 e faleceu em 1325. Aclamado em 1279, foi um dos mais longos reinados da história de Portugal. Deu um grande impulso à cultura, tornando oficial o uso da língua portuguesa, e fundando em Lisboa, em 1290, um Estudo Geral. Mandou traduzir importantes obras e foi, ele próprio, um destacado poeta.

 

Rio Mondego

Todas as tardes, vou Léman acima
 de António Nobre

Todas as tardes, vou Léman acima
(E leve o tempo passa nessas tardes)
A pensar em Coimbra. Que saudades!
Diogo Bernardes deste meigo Lima.

Na solidão, pensar em ti, anima,
Oh Coimbra sem par, flor das Cidades!
Os rapazes tão bons nessas idades
(Antes que a vida ponha a mão em cima)

Alegres cantam nos teus arrabaldes.
Por mais que tire vêm cheios os baldes,
Mar de recordações, poço sem fundo!

Freirinhas de Tentúgal, passos lentos!
E o chá com bolos, dentro dos conventos!
Meu Deus! meu Deus! E eu sempre a errar no Mundo!

Torre de Anto

Torre de Anto
de Manuel Alegre

Uma torre constrói-se com palavras
com lembranças com vírgulas
com desastres
como um corpo despido devagar
como vida virada do avesso
poisada sobre o vento e sobre a chuva
uma torre constrói-se com mãos nuas
uma torre com versos hemoptises
e com tudo o que fica depois
de tudo:
as cartas os retratos restos
pó.
Uma torre com duas letras
só.

Arco de Almedina

 

Arco de Almedina
de Manuel Alegre

Sob o Arco de Almedina entre o ditongo e o til
lá onde cheira a nardo e a jasmim
no interior dos pátios entre a cedilha e o trema
do outro lado da língua onde de súbito
o poema.

Sob o Arco da Almedina sob o Arco
entre azulejo e álgebra
lá onde mora aquela que não vem
sob o Arco de Almedina onde de súbito
ninguém.

Sol e sombra no canto e no silêncio
sob o Arco de Almedina onde o alaúde
canta um amor perdido entre o salgueiro e o barco.
Sob o Arco de Almedina. Sob
o Arco.

 

 

 

Cantigas de Coimbra

Rio que corres tão fundo,
Erva e choupos corcovados,
Nem toda a água do mundo
Faz os meus versos lavados!

Coimbra, minha madrinha!
Mondego, meu coração!
Ó Alta, a noiva que eu tinha
Morreu e pura paixão!

O meu amor que é Letrado,
Mandou-me dizer a mim
Que não me quer (desalmado!)
Com proclames em latim!

O meu bem anda em Direito
Aprende para juiz:
Mostra que guarda preceito
Nas sentenças que me diz.

O meu amor é estudante,
Caloiro de Medicina:
Já me opera o coração
Com sua lanceta fina.

O meu amor é estudante,
Vai-se formar em Ciências:
Não quero que se adiante,
Que as fitas medem ausências.

Amor que não quer sarar
Passa com panos de arnica:
Por isso eu quero casar
Com quem me ponha botica.

Já me formei em amores,
Tomo capelo em saudades:
Deitei fitinha de cores
Pelas cinco Faculdades.

As tricanas são da Alta,
Os futricas de Sansão,
O Mondego deu à malta
Um choupo por coração.


António de Sousa 🇵🇹 (1898-1981) Nascido na cidade do Porto, licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, colaborou em diversas revistas literárias. A sua poesia revela influência de António Nobre. Trabalhos mais importantes: Caminhos, Sete Luas, O Náufrago Perfeito, Jangada, Livro de Bordo, Linha de Terra, Terra ao Mar.

 

 

Trovas de Coimbra

Meu destino de estudante,
que hei de ser por toda a vida,
foi ir passando adiante
duma Coimbra perdida.

Fui às aulas nos Gerais
– a Cabra a chamar por mim. –
Lá me formei por demais,
mas só Deus sabe o meu fim.

Minha Coimbra, quem prova
como eu provei teu sabor?
António da Lua Nova,
menino do teu amor.

Só tu, meu Anto moreno,
Lá da Torre a vigiar
Se o luar voga sereno,
Se já passou o luar.

Coimbra – Santa Isabel,
como tu, linda e doente!
De manhã – favo de mel;
cravo roxo ao sol poente.

Ó Coimbra do Mondego
e dos amores que lá tive!
Quem te não viu anda cego;
quem te não ama, não vive.

Do Choupal até à Lapa
foi Coimbra os meus amores.
A sombra da minha capa
deu no chão, abriu em flores.

 

Palácios Confusos

Na minha doce Coimbra, a sul virado,
Dominando o Mondego e os seus salgueiros,
Há um bairro de humildes pardieiros,
Que Palácios Confusos é chamado.

Tão belo nome evoca no passado
Rica chusma de paços altaneiros
Com torres, grimpas, varandins ligeiros
E flâmulas a arder no céu lavado.

O tempo voador, que tudo come,
De tais riquezas só poupou o nome;
Tudo ali hoje é pobre, velho e estreito,

Sem um vislumbre do esplendor extinto!
Ó Palácios Confusos, também sinto
Uns palácios confusos no meu peito!

 

Epígrafe

Murmúrio de água na clepsidra gotejante,
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre…

Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida,
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça?
Procuremos somente a Beleza, que a vida
É um punhado infantil de areia ressequida,
Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa…

 

 

Eugénio de Castro 🇵🇹 (1869 -1944). Nasceu e morreu em Coimbra. Licenciado na Faculdade de Letras, foi seu professor e diretor. Considerado o fundador do Simbolismo na literatura portuguesa, polemizou com António Nobre e Alberto de Oliveira. Oaristos é o seu livro mais famoso. A casa onde nasceu o poeta fica na rua Ferreira Borges.

Sé Velha

Ali à Sé Velha
de Mário Saa

Bocas e violas, num rojar de rondas,
Timbram de outrora o luar duma cantiga;
Mulheres formosas da cidade antiga
Estendem-se mortas, rígidas de lua!

Ergue-se a abóbada da arcaria às ondas,
Tangem violas os chorões da rua;
É a hora em que a saudade se insinua
Como um vislumbre num canal de gôndolas.

Amainaram as violas, na noite alta.
Quem assobia assobiadelas de ópera.
Quem passa, agora, nos desvãos da rua?…

Vão-se apagando as luzes da ribalta,
Sobre o pano de boca o vento sopra,
Pintada e trémula a Catedral flutua…

Mário Saa 🇵🇹  (1893-1971) Nasceu em Caldas da Rainha, vindo a falecer em Avis, no Alentejo, de onde era originária a sua família. Foi onde viveu a maior parte da sua vida, numa grande propriedade familiar. Frequentou vários cursos que nunca concluiu, desenvolvendo a sua atividade cultural em muitos domínios, desde a arqueologia à poesia. O anti-semitismo é uma das facetas menos divulgadas do seu pensamento. Como poeta, frequentou as principais tertúlias do seu tempo, publicando nas revistas mais famosas, entre elas a Presença.


 

Largo da Portagem

O poema pode ser lido em frente ao local onde o poeta Miguel Torga mantinha o seu consultório médico, no Largo da Portagem.


Largo da Portagem,
de Vasco Pereira da Costa

Desperta o rio
Ao lado da cidade quieta

Esvai-se a noite em amor
Em quimera e desafio
Numa balada do Zeca

Uma vela de sol moço
Acorda
E repõe o alvoroço
Na barca da rebeldia

Trás da janela do Torga
Portugal parte à poesia.

Vasco Pereira da Costa 🇵🇹 Natural de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, e vive em Coimbra desde 1966, onde se licenciou na Faculdade de Letras em Filologia Românica. Publicou Nas Escadas do Império, Amanhece a Cidade, Venho cá mandado do Senhor Espírito Santo, Memória Breve, Riscos de Marear, Sobre-Ripas/Sobre-Rimas, Terras e My Californian Friends. Em 1984, recebeu o Prémio Literário Miguel Torga.

 


Portugal
de Miguel Torga

Avivo no teu rosto o rosto que me deste,
E torno mais real o rosto que te dou.
Mostro aos olhos que não te desfigura
Quem te desfigurou.
Criatura da tua criatura,
Serás sempre o que sou.

E eu sou a liberdade dum perfil
Desenhado no mar.
Ondulo e permaneço.
Cavo, remo, imagino,
E descubro na bruma o meu destino
Que de antemão conheço:

Teimoso aventureiro da ilusão,
Surdo às razões do tempo e da fortuna,
Achar sem nunca achar o que procuro,
Exilado
Na gávea do futuro,
Mais alta ainda do que no passado.

 

Miguel Torga é pseudônimo de Adolfo Correia Rocha 🇵🇹 (1907-1995) Nasceu em S. Martinho de Anta, viveu no Brasil durante a infância, vindo a licenciar-se em Medicina, em Coimbra, onde passou a viver. Foi autor de peças dramáticas e ficcionista, além de poeta.  Estreou-se com Ansiedades, destacando-se no domínio da poesia com Orfeu Rebelde, Cântico do Homem, bem como através de muitos poemas dispersos pelos dezasseis volumes do seu Diário. Recebeu o Prémio Camões em 1989 e o prêmio Vida Literária (atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores) em 1992.


Chegam e logo partem,
de José Ribeiro Ferreira

Um dia os vê chegar, no outro partem.
Povoam-nos a vida de sonhos ano a ano
E a luz conforta os olhos.

Algo de nós se vai, ou nos fica deles parte?

Sobre cada um o silêncio cai fecundo
E sem espera a partida erma nossos passos.

Dos sonhos que trouxeram crescem sonhos?
Dentro de alma livre voa o pensamento?
Alongue-se o tempo,
Esfumem-se as imagens,
Diluam-se as palavras…

Não é ermo,
Não limita o silêncio que se cria.

José Ribeiro Ferreira 🇵🇹 ( ) Nascido em Santo Tirso, é professor catedrático jubilado na Faculdade de Letras de Coimbra. Tem mais de uma centena e meia de trabalhos publicados – entre livros, artigos em revistas e enciclopédias. No domínio da poesia é autor de Ulisses sem Feaces, Os Olhos no Presente, Pesa o Momento a Eternidade, Telhas de Outro Alpendre, A Outra Face do Labirinto.

 

 


 Onde Comer em Coimbra

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Autoria

Julia Medrado (1985–), paulistana, atualmente vive em Portugal, é tradutora, publicista e mestre em Literatura e Crítica Literária. Graduada em Letras pela PUC-SP, é também especialista em Gestão de Projetos Digitais pelo SENAC. Presta serviços junto a redatores, revisores e tradutores; em 2010 criou a Tradstar e, desde então, se divide entre projetos, alguns literários e absolutamente pessoais, como este site que leva seu nome.