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Norwegian Wood

Haruki Murakami

Talvez o livro mais deprê-erótico do Murakami e também um dos mais delicados. Lançado em 1987, trouxe muita fama ao autor. No Japão “todo mundo” já leu. Comprei a versão em inglês, e quando peguei o pocket book, não sabia que era uma pocket bomb sobre juventude e suicídio. Também fala de um amor cheio de solidão. Tudo começa quando o protagonista Toru Watanabe ouve, num avião que acabara de pousar, a música Norwegian Wood dos Beatles, que o faz lembrar de seu passado em meio à uma profusão de sentimentos inesperados.

Norwegian Wood traz traços autobiográficos de Murakami, especialmente se considerarmos sua mudança para Tóquio por causa da faculdade, a desilusão com o movimento estudantil e até seu relacionamento com a mulher, que ele também conheceu nesse período. O autor nega: “Claro que não é um livro autobiográfico, minha juventude foi mais chata e menos trágica”. Ambientado em meio à confusão política dos anos 70, outro ponto interessante é a ocidentalização dos personagens e suas atitudes: eles leem F. Scott Fitzgerald, fumam Marlboro, ouvem Beatles e dedilham bossa nova ao violão, e eu não esperava ver uma citação a Antonio Carlos Jobim.

Dezoito anos antes, em 1968, Toru chega a Tóquio para estudar. Ele passa a morar em um alojamento, dividindo o quarto com um estudante de Geografia cheio de manias de organização. Solitário, Toru dedica seu tempo à leitura, à eventuais saídas com o amigo popular e rico (Nagasawa), e trabalha algumas noites em uma loja de discos. Até que um dia, Toru reencontra um rosto de seu passado: Naoko, a antiga namorada de seu grande e único amigo de adolescência, Kizuki, que se suicidou há pouco tempo. Marcados por essa tragédia em comum, os dois se aproximam e constroem uma silenciosa e intensa relação onde a fragilidade psicológica de Naoko se torna cada vez maior. Toru é forçado a um processo de auto-conhecimento.

“Acabei de fazer vinte anos.
E tenho de pagar o preço de continuar vivendo.”

Internada num sanatório nas montanhas, Naoko escreve convidando Toru a visitá-la. Ao chegar no local, Toru encontra a jovem senhora Reiko, uma paciente que vive ali já há sete anos e é professora de música, companheira de quarto e amiga de Naoko. Especialmente cuidadosa com a saúde e bem-estar de Naoko, se preocupando em explicar a Toru os problemas enfrentados pelos pacientes, inclusive os dela própria.

“Somos todos imperfeitos num mundo imperfeito.”

pepino

Enquanto isso, o protagonista conhece uma garota das suas aulas de Sófocles e Eurípides. Midori é muito mais aberta sexualmente, e tem ideias loucas que divertem e confundem. Dividido entre a paixão por Naoko e a atração por Midori, duas garotas bem diferentes e até opostas, o protagonista passa por reflexões e angústias. Midori, que estavam não apenas à frente do seu tempo, mas também à frente do nosso tempo contemporâneo. Há riqueza em cada gesto cotidiano. Para ilustrar a capa deste post, acabei escolhendo os pepinos por conta de uma das partes que mais gostei no livro. Quando Toru vai com Midori até o hospital onde o pai dela está recém operado de um câncer na cabeça.Em certo momento ele vê Toru comer um pepino cru, com sal e shoyu, e então pede o mesmo. Toru serve o convalescente e o observa mastigar. O pepino como símbolo inusitado representando a vida, sua conotação sexual permeia toda a obra. As ereções são descritas inibição. O sexo oral acontece inesperadamente. As mãos e lábios são oferecidos com facilidade.

 

“A maioria desses universitários é uma farsa completa. Morrem de medo de que alguém descubra que eles não sabem alguma coisa.
Todos leem os mesmos livros e todos usam as mesmas palavras…
Você chama isso de revolução?”

norwegian-wood-2010

O filme homônimo, de 2010, foi roteirizado e dirigido por Tran Anh Hung, e segue o enredo do livro com fidelidade. Em vários momentos achei o filme um pouco parado demais, delicado demais. Porém, é claro que isso foi apropriado para dar ao filme o tom da sutileza cultural japonesa. Assisti o filme logo após concluir a leitura, então estava com a história 100% fresca na memória, curti cada cena com atenção. A fotografia é linda, os atores são muito bons e bem escolhidos, houve fidelidade à obra, ou seja, tinha quase tudo o que é necessário para ser um filme ótimo. Mas achei um pouco cansativo, preciso admitir. A cena de sexo é composta por tonalidades azuis, frias, gerando uma atmosfera de estranheza a um ato marcado pelo fato de Naoko ter sido incapaz de fazer sexo com Kizuki. Rinko Kikuchi, uma atriz relativamente bem conhecida do público ocidental, participou do elenco de “Babel”, mescla bem esta fragilidade errática de Naoko com um lado mais doce da personagem.

Comparado ao best-seller O Apanhador no Campo de Centeio de J. D. Salinger, por sua influência a toda uma geração de leitores, o livro capta com maestria a angústia e o desamparo da transição da adolescência à idade adulta.

Sono

Haruki Murakami

Originalmente um conto, Sono foi escrito em 1989 e, só dois anos depois, publicado em uma compilação chamada Zō no shōmetsu (O Elefante Evapora-se, na tradução portuguesa). Aqui no Brasil ele só apareceu em 2015, pela Alfaguara que, com tradução direta do japonês por Lica Hashimoto, trouxe uma edição super caprichada, felizmente uma cópia das edições alemã e portuguesa, pois assim, além da bela capa dura e papel envernizado, ainda podemos contar com as geniais ilustrações azul-petróleo e prateadas da artista berlinense Kat Menschik. As ilustrações servem de complemento à sensação fria de mau agouro a que nós, leitores, nos sujeitamos ao embarcar na leitura desta obra insone.

A história trata da impossibilidade de dormir de uma dona de casa, esposa e mãe extremamente comum. Se passam impressionantes dezessete dias sem sono na vida dessa protagonista. No passado, essa mulher (cujo nome não é informado) era uma moça que lia bastante, também bebia e tinha sua numerosa família para apoiá-la durante os estudos da faculdade de Letras. Nessa época, ela teve sua primeira crise de insônia. Depois de casar-se com um dentista, a vida dela se ajeitou em uma rotina mecanizada, passível de ser repetida mesmo em estado de transe. Seu dia se divide em servir o café da manhã ao marido e ao filho, ir ao mercado, cozinhar o almoço, fazer natação à tarde, ler um pouco e receber a família novamente, preparando o jantar e indo para a cama. No entanto, certa noite, a narradora tem um sonho perturbador, vê um velho em seu quarto. Ele joga água em seus pés, uma água que não pára e ameaça dissolver sua carne – a partir de então ela não consegue mais dormir.

O tempo em que não consegue dormir se transforma em uma leitura voraz, acompanhada de conhaque e tabletes de chocolate – uma doçura totalmente evitável para seu marido e filho. Com Anna Karenina, de Tolstoi, ela passa a viver em um mundo à parte, meio deslocada da realidade, mas ainda realizando todas as suas obrigações de mãe e esposa. O cotidiano não a impede de descobrir novos significados na releitura do livro, o que também a faz rever sua vida e costumes.

“Os homens raramente sorriem de modo natural.”

Sua jornada insone, não raras vezes, parece acontecer apenas dentro da mente. A repetição de que não está com sono nos reafirma que, em realidade, após algumas horas – e não dias – a mulher devia estar letárgica. Mas no conto, ela segue ativa, com performances domésticas e aquáticas, na natação, ainda melhores do que quando ela conseguia dormir. Ela também se sente mais bonita, estranhando as feições do marido e do filho. Eles, no entanto, nada percebem. E ela segue numa espécie de existência paralela, aos poucos passa a se sentir melancólica, fazendo observações soturnas. Em dado momento ela decide dirigir de Tóquio rumo à Yokohama, pegando a estrada sozinha, à noite. Tudo segue para um final intenso, abrupto e talvez, para alguns, decepcionante. Mas eu consegui entender e sentir a tensão que Murakami propõe.

Inclusive, como era de se esperar, essa leitura pode dar sono! Não é brincadeira. O conto tem algo de kafkaniano que beira o nauseante. Fica aí um gancho para a leitura de O Castelo, né? Tentando interpretar mais afundo este conto de Murakami, sinto ser impossível não tocar no pânico da morte, da não-vida, nas associações mais óbvias como a do carro Honda City com um ataúde. A questão do eterno adormecer, da morte em si, está sempre presente.

“A escuridão era profunda como o universo, e não havia salvação”

Pág. 101 –

O sono pode ser uma fuga da realidade? E sem ele, conseguiríamos viver de modo mais nítido, mais lúcido? Estas são questões que o autor tenta responder com uma escrita simples, mas ainda assim repleta de indagações filosóficas. A narrativa tem tom confessional, é em primeira pessoa e segue rápida, com a forma resumida e potente.

No entanto, o livro é delicado de uma maneira quase ingênua; há quem diga que Murakami seja infantil. Acho que sua escrita é um pouco onírica, oscila entre a realidade e o sonho. Um modo mais simples de dizer, a la Murakami, seria que ele cria uma linha muito tênue entre o real e o imaginário nas frestas da tradicional sociedade japonesa urbana. E isso é muito envolvente! Como segue simples, suas frases curtas, intensas, e duvido muito que formem histórias para o paladar infantil, já que o fundo delas é um emaranhado filosófico que chega a confundir o leitor.