Originalmente um conto, Sono foi escrito em 1989 e, só dois anos depois, publicado em uma compilação chamada Zō no shōmetsu (O Elefante Evapora-se, na tradução portuguesa). Aqui no Brasil ele só apareceu em 2015, pela Alfaguara que, com tradução direta do japonês por Lica Hashimoto, trouxe uma edição super caprichada, felizmente uma cópia das edições alemã e portuguesa, pois assim, além da bela capa dura e papel envernizado, ainda podemos contar com as geniais ilustrações azul-petróleo e prateadas da artista berlinense Kat Menschik. As ilustrações servem de complemento à sensação fria de mau agouro a que nós, leitores, nos sujeitamos ao embarcar na leitura desta obra insone.

A história trata da impossibilidade de dormir de uma dona de casa, esposa e mãe extremamente comum. Se passam impressionantes dezessete dias sem sono na vida dessa protagonista. No passado, essa mulher (cujo nome não é informado) era uma moça que lia bastante, também bebia e tinha sua numerosa família para apoiá-la durante os estudos da faculdade de Letras. Nessa época, ela teve sua primeira crise de insônia. Depois de casar-se com um dentista, a vida dela se ajeitou em uma rotina mecanizada, passível de ser repetida mesmo em estado de transe. Seu dia se divide em servir o café da manhã ao marido e ao filho, ir ao mercado, cozinhar o almoço, fazer natação à tarde, ler um pouco e receber a família novamente, preparando o jantar e indo para a cama. No entanto, certa noite, a narradora tem um sonho perturbador, vê um velho em seu quarto. Ele joga água em seus pés, uma água que não pára e ameaça dissolver sua carne – a partir de então ela não consegue mais dormir.

O tempo em que não consegue dormir se transforma em uma leitura voraz, acompanhada de conhaque e tabletes de chocolate – uma doçura totalmente evitável para seu marido e filho. Com Anna Karenina, de Tolstoi, ela passa a viver em um mundo à parte, meio deslocada da realidade, mas ainda realizando todas as suas obrigações de mãe e esposa. O cotidiano não a impede de descobrir novos significados na releitura do livro, o que também a faz rever sua vida e costumes.

“Os homens raramente sorriem de modo natural.”

Sua jornada insone, não raras vezes, parece acontecer apenas dentro da mente. A repetição de que não está com sono nos reafirma que, em realidade, após algumas horas – e não dias – a mulher devia estar letárgica. Mas no conto, ela segue ativa, com performances domésticas e aquáticas, na natação, ainda melhores do que quando ela conseguia dormir. Ela também se sente mais bonita, estranhando as feições do marido e do filho. Eles, no entanto, nada percebem. E ela segue numa espécie de existência paralela, aos poucos passa a se sentir melancólica, fazendo observações soturnas. Em dado momento ela decide dirigir de Tóquio rumo à Yokohama, pegando a estrada sozinha, à noite. Tudo segue para um final intenso, abrupto e talvez, para alguns, decepcionante. Mas eu consegui entender e sentir a tensão que Murakami propõe.

Inclusive, como era de se esperar, essa leitura pode dar sono! Não é brincadeira. O conto tem algo de kafkaniano que beira o nauseante. Fica aí um gancho para a leitura de O Castelo, né? Tentando interpretar mais afundo este conto de Murakami, sinto ser impossível não tocar no pânico da morte, da não-vida, nas associações mais óbvias como a do carro Honda City com um ataúde. A questão do eterno adormecer, da morte em si, está sempre presente.

“A escuridão era profunda como o universo, e não havia salvação”

Pág. 101 –

O sono pode ser uma fuga da realidade? E sem ele, conseguiríamos viver de modo mais nítido, mais lúcido? Estas são questões que o autor tenta responder com uma escrita simples, mas ainda assim repleta de indagações filosóficas. A narrativa tem tom confessional, é em primeira pessoa e segue rápida, com a forma resumida e potente.

No entanto, o livro é delicado de uma maneira quase ingênua; há quem diga que Murakami seja infantil. Acho que sua escrita é um pouco onírica, oscila entre a realidade e o sonho. Um modo mais simples de dizer, a la Murakami, seria que ele cria uma linha muito tênue entre o real e o imaginário nas frestas da tradicional sociedade japonesa urbana. E isso é muito envolvente! Como segue simples, suas frases curtas, intensas, e duvido muito que formem histórias para o paladar infantil, já que o fundo delas é um emaranhado filosófico que chega a confundir o leitor.