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Jaroslava e seu prato

Alphonse Mucha

A primeira coisa que me chama a atenção neste retrato são os olhos da menina; concentrados, focados, sem piscar ou recuar, olhando profundamente para nossa alma. Com um olhar desse, pode-se supor que este era o retrato de uma femme fatale ou de uma feiticeira das lendas arturianas, mas na verdade o retrato mostra Jaroslava, a linda filha do artista tcheco da Art Nouveau: Alphonse Mucha, que tinha onze anos na época em que este quadro foi pintado. Ela parece ter sido uma grande poser; tal mãe, tal filha, devo dizer porque a esposa de Mucha, Maria Chytilová, era sua musa e frequentemente posava para o artista. Jaroslava estudou balet, mas decidiu seguir os passos do pai. Não apenas posou para ele, mas também o ajudou no estúdio, misturando cores para sua Epopeia Eslava e também pintando o céu estrelado na pintura “Eslavos em sua Pátria Original: Entre o Chicote Turaniano e a Espada dos Godos”. . Após a Segunda Guerra Mundial, Jaroslava até trabalhou na restauração das pinturas que haviam sido danificadas durante a guerra devido às más condições de armazenamento. Parece que o olhar determinado no retrato não é apenas uma questão estética, mas uma representação de sua personagem.

Adoro tudo neste retrato; os olhos são os que mais se destacam, mas também a pose, a forma como exibe o lindo prato com motivos florais folclóricos e a forma como o dedo mínimo repousa coquete no lábio superior. A flor amarela em seus cabelos longos faz com que ela pareça uma hippie de espírito livre e o vestido branco de manga bufante e fita vermelha, estilo camponês, combina bem com o motivo folclórico do prato de porcelana. O motivo do prato com tulipas e girassóis estilizados é simples e charmoso. O fundo azul é ecoado por traços de azul e lilás em seus cabelos. O pincel na mão dela parece dizer: sou uma musa, e também tenho outros talentos!

A imortalidade

Milan Kundera

“A armadilha do ódio é que ele nos prende muito intimamente ao adversário.”

“A solidão: doce ausência de olhares.”

“Em todo lugar existe um olho.”

“Quanto mais o homem se torna indiferente à política, aos interesses do outro, mais ele fica obcecado por seu próprio rosto.”

“Pode ser que seja necessário que a morte exista.”

“Quando alguém, com orgulho e ostentação, proclama sua filiação à nova geração, sabemos bem o que ele quer dizer: quer dizer que ainda estará vivo quando os outros (…) estarão mortos e enterrados.”

“Sonha-se com a imortalidade desde a infância.”

“Como a realidade, hoje, é um continente que pouco visitamos, e que justificadamente não amamos, a sondagem tornou-se uma espécie de realidade superior; ou em outras palavras, tornou-se a verdade.”

“nossa própria imagem é para nós o maior mistério.”

“Ah, em amor é preciso tão pouco para que fiquemos desesperados!”

“Enrolou-se na bandeira de Rimbaud como nos enolamos sob uma bandeira, como aderimos a um partido político, como se torce por um clube de futebol.”

“A glória acrescenta a tudo que nos acontece um eco cem vezes maior.”

“… o poder daquele que fica na pebumbra.”

“Quando o sofrimento é muito agudo, o mundo desaparece e cada um de nós fica só consigo mesmo. O sofrimento é a Grande Escola do egocentrismo.”

“… a alma hipertrofiada.”

“A preocupação com a própria imagem, essa é a incorrigível imaturidade do homem.”

“Mesmo depois da morte, foi difícil para mim resignar-me a não ser mais.”

“…saborear a volúpia do não ser total.”

“Feiura: caprichosa poesia do acaso. (…) Beleza: prosaísmo da média exata. Na beleza, mais ainda que na feiura, manifesta-se o caráter não individual, pão pessoal do rosto.”

“…o mundo onde não existem rostos.”

“Mas a maior parte das pessoas não conheceu o amor…”

“O que é insustentável na vida não é ser, mas sim ser seu eu. (…) Inês participava desse ser elementar que se manifesta na voz do tempo que corre e no azul do céu; agora sabia que não há nada mais belo.”

“Viver, não existe nisso nenhuma felicidade. Viver: carregar pelo mundo seu eu doloroso. Mas ser, ser é felicidade. Ser: transformar-se em fonte, bacia de pedra na qual o universo cai como uma chuva morna.”

pág. 301

VENTRIPOTENTE: que gosta muito de comer, que tem a barriga grande.


Milan Kundera 🇸🇰 (1929 -) é um escritor tcheco, naturalizado francês. Autor de importantes obras, como A Brincadeira (1967), O Livro do Riso e do Esquecimento (1979) e A Insustentável Leveza do Ser (1984), que o levaram a se tornar um dos mais consagrados escritores do século XX. Ao longo dos anos 50, Kundera trabalhou como tradutor, escreveu poemas, ensaios e peças de teatro. Seus primeiros trabalhos poéticos foram pró-comunistas. Milan Kundera recebeu diversos prêmios.

A ignorância

Milan Kundera

Irena reencontra Josef por acaso no aeroporto de Paris. Ambos viajam de volta a Praga, reerguida segundo as regras capitalistas depois da queda dos regimes comunistas do Leste Europeu, em 1989. Em comum, eles têm uma história de exílio e um sentimento profundamente nostálgico em relação à paisagem tcheca.Neste romance sobre a memória, Milan Kundera subverte a noção de nostalgia. O escritor relembra a etimologia da palavra, que em sua origem grega remete ao “sofrimento causado pelo desejo irrealizado de retornar”. Esse sentimento liga-se também à ignorância: só há nostalgia daquilo de que não temos mais notícia. Como afirma o narrador, “acaso” é um outro modo de dizer “destino”. O fascínio que as coincidências e os pequenos retornos exercem é aquele da consciência do presente e de sua ligação com o passado. Na memória, os acasos se harmonizam e ganham beleza.

Em grego, retorno se diz nóstos. Álgos significa sofrimento. A nostalgia é, portanto, o sofrimento causado pelo desejo irrealizado de retornar. Para essa noção fundamental, a maioria dos europeus pode utilizar uma palavra de origem grega, e também outras com raízes em sua língua nacional: añoranza, dizem os espanhóis; saudade, dizem os portugueses. Em cada língua, essas palavras possuem uma conotação semântica diferente. Muitas vezes significam apenas a tristeza provocada pela impossibilidade da volta ao país, nostalgia do país, da terra natal. Aquilo que em inglês se chama homesickness; ou em alemão: Heimweh. Mas essa é uma redução espacial dessa grande noção. Uma das mais antigas línguas europeias, o islandês, distingue bem dois termos: söknudur: nostalgia no seu sentido geral; e heimfra: nostalgia do país. Os tchecos, têm seu próprio substantivo, stesk, e seu próprio verbo; a frase de amor mais comovente em tcheco: styska se mi po tobe: sinto nostalgia de você; não posso suportar a dor da sua ausência. Em espanhol, añoranza vem do verbo añorar (ter nostalgia), que vem do catalão enyorar, derivado, este, da palavra latina ignorare (ignorar). À luz dessa etimologia, a nostalgia surge como o sofrimento da ignorância. Você está longe e não sei o que se passa com você. Meu país está longe, eu não sei o que está acontecendo lá. Certas línguas têm algumas dificuldades com a nostalgia: os franceses só podem expressá-la pelo substantivo de origem grega e não possuem um verbo; podem dizer: je m’ennuie de toi, mas a palavra s’ennuyer é fraca, fria, em todo caso muito leve para um sentimento tão grave. Os alemães utilizam raramente a palavra nostalgia na sua forma grega e preferem dizer Sehnsucht: desejo daquilo que está ausente. Mas a palavra Sehnsucht pode se referir tanto àquilo que foi como àquilo que nunca existiu e não implica necessariamente a ideia de um nóstos.

 


Milan Kundera 🇸🇰 (1929 -) é um escritor tcheco, naturalizado francês. Autor de importantes obras, como A Brincadeira (1967), O Livro do Riso e do Esquecimento (1979) e A Insustentável Leveza do Ser (1984), que o levaram a se tornar um dos mais consagrados escritores do século XX. Ao longo dos anos 50, Kundera trabalhou como tradutor, escreveu poemas, ensaios e peças de teatro. Seus primeiros trabalhos poéticos foram pró-comunistas. Milan Kundera recebeu diversos prêmios.