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A História da Mãe

Hans Christian Andersen + Kay Nielsen

“A História da Mãe”, um conto fantástico de Hans Christian Andersen, traz uma mãe que ao cuidar exaustivamente do seu filho doente, fecha os olhos por um momento e ao abri-los descobre que a criança desapareceu, levada pela Morte. Desesperada a mãe pede à Noite que lhe diga para onde foi a Morte, pois ela quer buscar seu filho de volta. Primeiro ela deve cantar para a Noite todas as canções que cantava para o filho. A mãe sai na noite gelada em busca do lugar onde mora a Morte. O cenário gélido do conto parece perfeito para a ilustração de Kay Nielsen, que mostra o momento em que a mãe acolhe um espinheiro que pode ajudá-la, em troca de seu calor. A mãe está disposta a tudo para encontrar seu filho roubado.

“Então a mãe chorou e cantou e torceu as mãos. Houve muitas canções, e ainda muito mais lágrimas até que finalmente a Noite dissesse: “Vá à direita, pela escura floresta de abetos, vi lá a Morte seguir com seu filhinho”

 

“Na floresta, a mãe cruzou uma estrada e não sabia qual caminho seguir. Perto havia um espinheiro; sem folhas nem flores, rigoroso o  inverno, com pingentes de gelo pelos galhos. “Viste a Morte passar com meu menino?” perguntou a pobre mãe ao espinheiro.

“Sim”, respondeu ele; “mas não lhe direi que caminho a Morte tomou até que você me aqueça em seu seio. Estou morrendo de frio, sem seu calor vou virar gelo…”

Então ela apertou bem o espinheiro contra o próprio peito, para que o pudesse descongelar. Os espinhos perfuraram a carne, grossas gotas de sangue caíam, mas do espinheiro brotaram folhas verdes e frescas que  aos poucos, se transformavam em flores na noite fria de inverno, tão quente é o coração de uma mãe triste!

Só então o espinheiro revelou à mãe enlutada qual o caminho ela deveria seguir para encontrar a Morte e o filho.”

A ilustração do conto me pareceu comovente. A delicadeza, a elegância, a força do vento nas dobras do vestido negro, a curva certa do corpo, a árvore retorcida, as flores tão alvas, a lua ao longe, tudo me lembra arte japonesa, e também alguns desenhos do Egon Schiele. A simplicidade da cena ajuda a enfatizar a sua profundidade emocional. O rosto pálido e conformado da mãe revela a dor e o tormento que ela sente. As sombras dos olhos são de todas as noites mal dormidas. Ela está de luto, vestida de preto como a Noite e a própria Morte. Se nos concentrarmos, dá até para sentir o frio pontilhado no ar. A nitidez dos galhos que ela pressiona contra o peito também fere quem os vê. O sangue caindo na neve, o horizonte cinza. As flores brancas são estranhas no meio do inverno, mas como conta o conto, isso é comovente, as flores só cresceram porque o amor da mãe era tão forte que seu coração exalava calor para brotar outra forma de vida.


Hans Christian Andersen 🇩🇰 (1805-1875) foi um autor dinamarquês. Embora seja um escritor prolífico de peças, relatos de viagem, romances e poemas, ele é mais lembrado por seus contos de fadas. Os contos de fadas de Andersen, compostos por 156 histórias em nove volumes, foram traduzidos para mais de 125 idiomas.


Kay Nielsen 🇩🇰 (1886-1957) foi um ilustrador dinamarquês popular no início do século 20, a Idade de Ouro da Ilustração, que durou desde quando Daniel Vierge e outros pioneiros desenvolveram a tecnologia de impressão até o ponto em que desenhos e pinturas podiam ser reproduzidos com facilidade razoável.

o deserto de te gastares

Daniel Faria

Podes construir a vida toda e chegar ao fim sem teres abrigo. Podes dar ao mundo os filhos, a força, a fartura, sem alcançares outra recompensa senão essa: a de teres dado. E certamente não há outra maior. Podes estar à mesa a comer sozinho e ao vir-te à memória o número dos teus filhos e dos teus netos tudo de repente perder sentido. Pensa, então, não que a vida te abandona, mas que te leva.

A viuvez e o luto são mais do que o sofrimento. A tarefa da vida é o deserto de te gastares. Ganhaste transparência. Aproximas o que divides e separas. E chamam-te a libertar.


IN: Daniel Faria, Sétimo Dia, edição Assírio & Alvim


Daniel Faria 🇵🇹 (1971-1999) nasceu em Baltar, Paredes, poeta beneditino, precocemente falecido aos 28 anos de idade, quando estava prestes a concluir o noviciado no Mosteiro Beneditino de Singeverga. Frequentou o curso de Teologia na Universidade Católica Portuguesa – Porto, em 1996. No Seminário e na Faculdade criou gosto por entender a poesia e dialogar com a expressão contemporânea. Licenciou-se em Estudos Portugueses na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

Girassol, de Schiele

Egon Schiele

SUNFLOWER
1908
44 × 33 cm
Niederösterreichisches Landesmuseum, St. Polten

Schiele nunca esteve interessado na replicação real da aparência em sua arte e isso é perceptível em suas sucessivas representações de girassóis. Schiele estaria muito familiarizado com este tema que, claro, já tinha sido muito explorado por Van Gogh, e esta é a primeira imagem conhecida nesta série em particular. É certamente derivado da tradição decorativa da Secessão, mas acrescenta algo pessoal e distinto. Todo o plano superior da tela é ocupado pela flor e, apesar da maturidade e da cor abundante, o girassol também está à beira da morte. Embora a flor e a presença das sementes sugiram juventude e energia, a implicação é que a vida segue a morte que, por sua vez, segue a vida novamente. O padrão da linha é bastante óbvio, pois as folhas sugerem um plano horizontal, enquanto o caule fornece a vertical. Isto torna-o um trabalho bastante juvenil, e não totalmente alcançado espacialmente, mas os temas que se tornariam predominantes na sua obra restante já estão muito em evidência, com foco nos ciclos de vida e morte e nas proporções distorcidas e inesperadas do próprio tema.


Egon Schiele 🇦🇹 (1890-1918)  foi um pintor austríaco ligado ao movimento expressionista. Um protegido de Gustav Klimt, foi um pintor importante do início do século XX. Seu trabalho é célebre por sua intensidade e sua sexualidade crua, e pelos muitos autorretratos que produziu, incluindo autorretratos nus.