tag . sono

24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono

Jonathan Crary

Quando publicado no Brasil pela Cosac Naify, 24/7 Capitalismo tardio e os fins do sono, este ensaio do norte-americano Jonathan Crary, foi divulgado como o primeiro livro da Coleção Exit, um editorial que busca identificar e analisar criticamente vários temas do mundo contemporâneo, discutindo as novas ferramentas das ciências humanas com reflexões sobre fenômenos ainda pouco falados, com o objetivo de pensar saídas para a complexidade da vida atual.

pág. 125 – “Seja em meados do século XX ou hoje, a serialidade é a produção entorpecente e incessante do mesmo.”

Para o autor, o sono é o último obstáculo ou barreira natural de um capitalismo absoluto. O autor explica  o conceito “time is money”, graças ao qual o sono vem sendo prejudicado, assediado e rebaixado da categoria de direito de todos para se tornar mais uma conquista do dinheiro, privilégio de poucos.  Com dados militares, científicos e populares Crary descreve uma cultura na qual a economia força tudo a um funcionamento 24 horas por dia, 7 dias por semana, numa lógica ininterrupta que vê o sono como um empecilho e uma afronta ao enriquecimento privado.

pág. 9  – “24/7 é um tempo de indiferença, contra o qual a fragilidade da vida humana é cada vez mais inadequada, e no qual o sono não é necessário nem inevitável.”

Ao recuperar uma cultura ocidental que via no sono e no sonho possibilidades utópicas e regenerativas, o livro faz um diagnóstico agudo do mundo contemporâneo. Um mundo cujo sentido não se atém mais aos limites temporais e espaciais, mas segue sob uma lógica para a qual a própria vida humana é um problema a ser corrigido ou amenizado. Esse regime traz em si a pior das desapropriações a que o homem pode ser submetido: a desregulamentação biológica do sono, uma erosão do sonho.

pág. 11  – “O sono é um hiato incontornável no roubo de tempo a que o capitalismo nos submete.“

Na citação de Giorgio Agamben, “o sono é a modalidade do tempo vivido que assegura uma interrupção e um desligamento das redes e dos dispositivos tecnológicos para que entremos num estado de inatividade e de inutilidade.”

pág. 27 – “…um mundo 24/7 é desencantado…”

A visão do livro como um todo é bastante pessimista, mas trazida com grande perspicácia e notável domínio do tema, é impossível não concordar com o autor até quando ele se empolga. Para Jonathan Crary, o tempo deixou de existir e hoje não há experiência humana que não seja mensurável ou exposta à luminosidade de telas interativas. E quem vai negar que vivemos em uma época de hiperatividade sem trégua? E nem só no ciberespaço, já que os espaços físicos públicos são projetados de modo a impedir o sono ocasional.

pág. 98 – “Há uma incompatibilidade profunda entre qualquer coisa que se assemelhe ao devaneio e as prioridades de eficiência, funcionalidade e velocidade.”

A realidade econômica do neoliberalismo despreza as proteções sociais dos indivíduos. Há exploração  em todos os níveis ambientais e classes sociais, as pessoas já se encontram envolvidas e dependentes de ferramentas virtuais e o sono tranquilo tornou-se um luxo muitas vezes impagável.

pág. 27 – “…o sono deve ser comprado…”

Mas o imperativo do sono não nos permite esquecer o ritmo cíclico e muitas vezes frágil da vida. Daí toda a atenção a ele. Ainda é o sono que nos impele a reduzir as velocidades que a sociedade exige; cada vez mais precisamos estar sempre antenados e ativos na construção de nossas identidades virtuais conforme parâmetros e critérios de mercado. Crary fala sobre a alucinação da presença, sempre acompanhada da depreciação da fraqueza e inadequação do tempo humanos. Fala também da privatização da experiência individual, do conceito de reificação e da modelagem de si próprio. É muito impactante ler sobre a hiperexpansão da lógica do espetáculo, ocorre uma remontagem do eu. Todos precisam de uma “presença online”.

pág. 55 – “A ilusão de escolha e autonomia é uma das bases desses sistema global de autorregulação.”

A ideia central desta leitura não é ver que a tecnologia tem um lado terrível; mas sim falar da importância de usarmos essa tecnologia de um jeito inteligente de fato, que nos dê controle e mais conhecimento da vida. Me parece que enfrentar a problemática do vício e da motivação das instituições que patrocinam essa mania seja a única forma de efetivamente lutar contra o movimento. O próprio autor, ao final do livro, afirma que essa esperança é um pouco semelhante a um sonho, mas não por isso menos válido ou digno de ser cultivado ou até defendido nos dias de hoje.

pág. 27 – “O planeta é repensado como um local de trabalho ininterrupto ou um shopping center de escolhas, tarefas, seleções e digressões infinitas, aberto o tempo todo.”

A tradução é de Joaquim Toledo Jr. e o livro traz várias citações de ouro: Nietzche, Freud, Marx, Godard, Hitchcock, André Breton, Bernard Stiegler, Paul Valéry, Zygmunt Bauman, Guy Debord, Jean-Paul Sartre, Henri Lefebvre e outros.

Inclusive, há uma passagem que me interessou particularmente, pois analisa uma pintura de 1782 de Joseph Wright of Derby, mostrando exatamente o momento em que as luzes naturais e artificiais se misturavam.

Arkwright's Cotton Mills by Night - 1782 - Joseph Wright

Arkwright’s Cotton Mills by Night – 1782 – Joseph Wright of Derby – Oil on canvas. 99.7 x 125.7 cm.

Wright of Derby foi considerado o primeiro pintor profissional que expressou o espírito da Revolução Industrial. É conhecido também pelo uso do efeito claro/escuro nas suas pinturas, que acentua o contraste entre a luz e a escuridão. Aliás, todas as informações trazidas pelos autor do livro no que se refere à imagem e à tela são muito interessantes. Ele fala também dos impactos da televisão, que hoje pode ser considerada apenas parte dessa transição, e não a grande responsável por uma mudança tão radical no modo de vida. Chegando onde estamos hoje, numa hiper-conectividade sem fim.

pág. 97 – “Esse é um traço decisivo da era do vício tecnológico: podemos voltar repetidas vezes a um vácuo neutro de baixa intensidade afetiva.”

Outra parte que merece um destaque é quando o autor traz uma referência do presidente da Google, Eric Schmidt, em 1990, quando este declarou que entrávamos em uma “economia da atenção”, onde empresas, instituições e indivíduos brigariam ferrenhamente por espaço nos globos oculares do maior número possível de pessoas. Vivemos, de fato, uma era imagética, tremendamente assaltada por imagens e sua produção infinita. Há uma quantidade imensurável de conteúdo “à venda”.

Sugestões Complementares

  • Communication Vassels – André Breton
  • La Société du Spectacle – Guy Debord
  • D’Est – filme de Chantal Akerman

Sono

Haruki Murakami

Originalmente um conto, Sono foi escrito em 1989 e, só dois anos depois, publicado em uma compilação chamada Zō no shōmetsu (O Elefante Evapora-se, na tradução portuguesa). Aqui no Brasil ele só apareceu em 2015, pela Alfaguara que, com tradução direta do japonês por Lica Hashimoto, trouxe uma edição super caprichada, felizmente uma cópia das edições alemã e portuguesa, pois assim, além da bela capa dura e papel envernizado, ainda podemos contar com as geniais ilustrações azul-petróleo e prateadas da artista berlinense Kat Menschik. As ilustrações servem de complemento à sensação fria de mau agouro a que nós, leitores, nos sujeitamos ao embarcar na leitura desta obra insone.

A história trata da impossibilidade de dormir de uma dona de casa, esposa e mãe extremamente comum. Se passam impressionantes dezessete dias sem sono na vida dessa protagonista. No passado, essa mulher (cujo nome não é informado) era uma moça que lia bastante, também bebia e tinha sua numerosa família para apoiá-la durante os estudos da faculdade de Letras. Nessa época, ela teve sua primeira crise de insônia. Depois de casar-se com um dentista, a vida dela se ajeitou em uma rotina mecanizada, passível de ser repetida mesmo em estado de transe. Seu dia se divide em servir o café da manhã ao marido e ao filho, ir ao mercado, cozinhar o almoço, fazer natação à tarde, ler um pouco e receber a família novamente, preparando o jantar e indo para a cama. No entanto, certa noite, a narradora tem um sonho perturbador, vê um velho em seu quarto. Ele joga água em seus pés, uma água que não pára e ameaça dissolver sua carne – a partir de então ela não consegue mais dormir.

O tempo em que não consegue dormir se transforma em uma leitura voraz, acompanhada de conhaque e tabletes de chocolate – uma doçura totalmente evitável para seu marido e filho. Com Anna Karenina, de Tolstoi, ela passa a viver em um mundo à parte, meio deslocada da realidade, mas ainda realizando todas as suas obrigações de mãe e esposa. O cotidiano não a impede de descobrir novos significados na releitura do livro, o que também a faz rever sua vida e costumes.

“Os homens raramente sorriem de modo natural.”

Sua jornada insone, não raras vezes, parece acontecer apenas dentro da mente. A repetição de que não está com sono nos reafirma que, em realidade, após algumas horas – e não dias – a mulher devia estar letárgica. Mas no conto, ela segue ativa, com performances domésticas e aquáticas, na natação, ainda melhores do que quando ela conseguia dormir. Ela também se sente mais bonita, estranhando as feições do marido e do filho. Eles, no entanto, nada percebem. E ela segue numa espécie de existência paralela, aos poucos passa a se sentir melancólica, fazendo observações soturnas. Em dado momento ela decide dirigir de Tóquio rumo à Yokohama, pegando a estrada sozinha, à noite. Tudo segue para um final intenso, abrupto e talvez, para alguns, decepcionante. Mas eu consegui entender e sentir a tensão que Murakami propõe.

Inclusive, como era de se esperar, essa leitura pode dar sono! Não é brincadeira. O conto tem algo de kafkaniano que beira o nauseante. Fica aí um gancho para a leitura de O Castelo, né? Tentando interpretar mais afundo este conto de Murakami, sinto ser impossível não tocar no pânico da morte, da não-vida, nas associações mais óbvias como a do carro Honda City com um ataúde. A questão do eterno adormecer, da morte em si, está sempre presente.

“A escuridão era profunda como o universo, e não havia salvação”

Pág. 101 –

O sono pode ser uma fuga da realidade? E sem ele, conseguiríamos viver de modo mais nítido, mais lúcido? Estas são questões que o autor tenta responder com uma escrita simples, mas ainda assim repleta de indagações filosóficas. A narrativa tem tom confessional, é em primeira pessoa e segue rápida, com a forma resumida e potente.

No entanto, o livro é delicado de uma maneira quase ingênua; há quem diga que Murakami seja infantil. Acho que sua escrita é um pouco onírica, oscila entre a realidade e o sonho. Um modo mais simples de dizer, a la Murakami, seria que ele cria uma linha muito tênue entre o real e o imaginário nas frestas da tradicional sociedade japonesa urbana. E isso é muito envolvente! Como segue simples, suas frases curtas, intensas, e duvido muito que formem histórias para o paladar infantil, já que o fundo delas é um emaranhado filosófico que chega a confundir o leitor.