No primeiro volume da série Minha Luta, A Morte do Pai, acompanhamos o processo destrutivo que levou o pai de Karl Ove Knausgård à morte, e na sequência, em Um Outro Amor, o autor fala sobre o começo do seu segundo casamento e a paternidade, que conflitava com suas ambições literárias. Talvez seja um pouco difícil explicar o magnetismo gerado pelos livros dessa série, quase não sei como a história de um homem que basicamente só fuma, lê, escreve e passeia com os filhos se tornou uma das obras mais fantásticas que já li.

“…um homem que vivia a vida no mundo das palavras.”

Com uma literatura bem pontuada, o autor ousa desafiar o que é ser homem e pai num país de primeiro mundo do século XXI. Questionando os parâmetros de masculinidade, ele percorre os caminhos rotineiros de uma vida familiar que se mostra maçante e ordinária, mas não sem apurar as pequenas pepitas de maravilhas que aparecem aqui e ali. Nem sempre é fácil perceber a mágica do corriqueiro, do comum e da suposta banalidade da vida cotidiana. Muitas vezes somos superficiais na observação do mundo que nos rodeia. Mas as digressões do autor em meio à louça suja e à desorganização de uma casa são profundas e muito francas. É impossível não sentir empatia com aquela angústia, mesmo sem viver a rotina descrita. É um livro repleto das banalidades do dia-a-dia, e que até pode parecer simples, mas não é.

pág. 251 – “…porque justamente o comum e o trivial estivessem banhados em ouro.”

Com passagens bastante descritivas e detalhadas, somos ambientados dentro da mente do autor. É como se fossemos levados para dentro do cerne do ser de Karl Ove Knausgård e passássemos e a viver sua vida conjuntamente. Ele não economiza palavras e páginas para tal. Todas as críticas e resenhas que li deste volume faziam questão de dizer que “uma conversa com amigos durante o jantar pode se estender por cem páginas“, mas eu achei essa parte particularmente especial justamente pela falta de pressa, por dar voz a todos os presentes, por fazer reverberar as histórias de terceiros dentro de sua própria história, como é na vida real. Qualquer ação é capaz de lhe arrancar algo profundo e poético, mesmo uma conversa informal entre amigos numa noite de ano novo.

“…a literatura não se resume às palavras, a literatura é aquilo que as palavras despertam em quem lê.”

Logo depois de se separar da primeira mulher, Karl Ove deixa a capital norueguesa e sozinho se muda para Estocolmo, onde começa uma nova vida, em busca de uma perspectiva estrangeira. Na Suécia, ele cultiva uma amizade profunda com Geir, outro autor norueguês com quem tece profundos e importantes diálogos sobre literatura, amizade, vida social e a diferença entre os dois países. Ao longo do livro ficava torcendo para que se encontrem e começassem a papear, já que a conversa dos dois sempre rendia algumas das melhores reflexões do livro, graças à sinceridade excruciante que mantém.

pág. 475 – “Falar com você é como fazer terapia com o diabo.”

Mas, como o próprio título entrega, a temática geral é a do amor. Uma linda e forte história de amor com a romântica Linda Boström, a poeta sueca por quem se apaixonara anos antes durante um encontro de escritores em Bishop-Arms. Fiquei especialmente emocionada porque embora o enredo romântico não seja de aventura ou proibição, como esperamos de uma digna “história de amor”, o sentimento que ali nasce é profundo, dolorido e preenche cada espaço. É arrebatador, expansivo e gera os filhos que prolongam a história e o amor familiar.

pág. 219 – “… você tem que arder como eu ardo.”

Os saltos no tempo, ensaios e flashbacks demonstram o pleno domínio do autor, capaz de conciliar a narrativa de episódios pontuais com longos afastamentos que acompanham o tempo das personagens. Na construção narrativa de Knausgård, as fronteiras entre memória e invenção são diluídas a tal ponto que a sua própria vida é recriada e ressignificada.

“…o fato de que o talento para ver não podia ser aprendido, mas era algo a que você simplesmente tinha ou não tinha acesso me condenou a uma vida na baixeza, fez de mim um dos baixos.”

Entre questões existenciais e reflexões acerca da criação literária, o que forma o romance é a conturbada e bela história de amor de um homem por sua mulher e seus filhos.

Em dado momento, Karl Ove e Linda vão a uma festa infantil na casa de conhecidos. Uma situação super comum, mas a partir da qual o autor observa cada detalhe de sua inadequação social. Passando pelo enfado de tomar parte em conversas sobre temas pelos quais não tem qualquer interesse, ele analisa os olhares, gestos, escolhas de palavras, tudo ao redor, e depois se lembra de constrangimentos passados, nos explicando muito de seu jeito pessoal e social.

pág. 44 – “… como as crianças não tem o verniz da decência e da cortesia que se encontra nos adultos.”

Karl Ove escreve de forma crua, e por “crua” não digo insensível ou agressiva, mas muito sincera. Em muitos trechos somos inundados de vergonha, comiseração e identificação.

Há uma compulsão do autor em reviver, retraçar e recontar a própria história, de criar seu próprio percurso inerte em paralelo à ação da vida. Karl nos passa sempre a sensação de buscar algo que está além do seu alcance, numa intratável insatisfação consigo mesmo, com sua vida, sua criatividade e também sua família.

A solidão, ou a necessidade dela, é um dos pontos centrais da angústia do autor, porque mesmo que a busca pelo relacionamento sempre esteja evidente e até a paixão por Linda, a sua necessidade de solidão também é marcante e permeia toda a vida da jovem família. Desde o primeiro volume, Karl Ove é um homem solitário em essência.

Não estamos tratando apenas de um relato sincero e confessional de um filho que perde o pai, no primeiro volume, ou de um homem de meia idade casado pela segunda vez, com três filhos, e que decide mudar de cidade, no segundo. O que está em jogo, paralelo a isso, é o posicionamento desse homem dentro da tradição, dentro do espaço do exercício da linguagem, a performance da criação de um estilo e de uma voz.