Não há lugar para a lógica em Kassel é, na definição do próprio autor, uma “reportagem romanceada” sobre sua participação na dOCUMENTA (13). Muito mais do que um simples relato de como transcorreram seus dias na Alemanha, o livro se revela uma grande reflexão sobre a literatura e a arte contemporâneas, vistas a partir da crise econômica na Europa e em confronto com ela, afinal “qualquer atividade ligada à vanguarda”, observa, “nunca deveria perder de vista o lado político”.

O livro se passa durante a dOCUMENTA, na cidade alemã de Kassel, ocorrida no ano de 2012. No texto, acompanhamos o primeiro contato realizado pela assistente da curadora que convida o autor para uma viagem financiada por milionários a pretexto de que o mesmo pudesse conhecer “os mistérios do Universo”.

Fridericianum

Arranja-se uma palestra que autor se propõe a ministra no seu último dia, intitulada “Conferência sem ninguém”. E as atividades para as quais Vila-Matas fora convidado compreendiam, entre outras coisas, que ele permanecesse em um restaurante chinês,  escrevendo e atendendo seus possíveis e aleatórios interessados.

Através da leitura, percorremos as ruas, bosques e os patrimônios arquitetônicos de Kassel, cidade que inspirou os irmãos Grimm a escreverem boa parte dos seus mais conhecidos contos-de-fada.  Aos estudantes de Arte, a experiência narrada sobre obra de Pierre Huyghe, – que consiste num jardim mal cuidado em cujo centro está uma escultura feminina com uma colméia na cabeça, fazendo paisagem a montes de terra pelos quais um um galgo branco passeia tranquilamente, sem notar que uma de suas patas está  pintada de rosa – , pode ser ótimo exemplo de um texto crítico  feito por alguém que não tem formação na área, mas que a partir da própria experiência, cunha argumentos tão precisos que  mesmo o crítico de arte mais especializado não ousaria questionar.

Untilled (2012), do artista francês Pierre Huygue

Colapso e Recuperação é o eixo curatorial da 12ª edição da Documenta, sensações que escritor diz sentir no próprio corpo, pois, segundo ele, ao longo de todo o evento, se mostrou “disposto pelas manhãs, cansado à tarde e totalmente angustiado” ao cair noite.  Acontece que o livro inteiro é uma grande viagem ao mundo das Artes, fomentado pelo amplo conhecimento que o Vila-Matas tem sobre literatura.

galgo espanhol, o cão “midiático”

De linguagem simples, até mesmo conceitos como “vanguarda” ou a relação que o perfume usado pela esposa de um ditador tem a ver com a Guerra, são digeridos pelo escritor para imprimir no texto uma narrativa absorvente, mesmo que cheia de informações. Não é difícil avançar as páginas e  compreender as referências literárias e filosóficas que estão por detrás do acervo simbólico do autor, revelando a imensa perícia cognitiva e a generosidade do escritor ao compartilhar um pouco de suas experimentações, mesmo as inventadas, com quem o lê.

 

o restaurante chinês Dschinghis Khan, em Kassel

 

o autor Enrique Vila-Matas durante a instalação, 2012


mcguffins: clichê


Vila-Matas sai de Barcelona, onde mora, disposto a abandonar “os clássicos tiques fatalistas dos intelectuais” de seu país, que acreditam ser a arte contemporânea “um desastre absoluto”. Diante das obras expostas na Documenta 13, sobretudo aquelas que mais o tocaram – como Untilled, de Pierre Huyghe, uma esterqueira montada em pleno parque, e This variation, de Tino Sehgal, que ele visitava todas as manhãs –, Vila-Matas percebe que não foi a arte que entrou em colapso, mas o mundo. É exemplar dessa percepção a cena em que Carolyn Christov-Bakargiev, uma das curadoras da Documenta, lhe pergunta o que estava achando da mostra. À questão, que o pega de surpresa, Vila-Matas responde: “Que não há mundo”. Mas, se não há mundo, há ainda arte. Frente a uma Europa destroçada pela crise, frente a um mundo arruinado, não sobra nada mais ao escritor e ao artista do que criar: “A Europa estava morta […], mas a arte do mundo estava muito viva, era a única janela aberta que restava”. Ou seja, contrariando as vozes agourentas dos intelectuais de seu país, Vila-Matas chega à conclusão de que não é a arte que está em crise, mas, sim, todo o resto: “eu acreditava que a arte continuava perfeitamente de pé e, em todo caso, era apenas o mundo […] o que havia desmoronado”. Porém, ao contrário do que se poderia depreender, Vila-Matas acredita que não é com pessimismo ou desconsolo que o artista deve encarar essa confrontação com a crise política e econômica, mas com “alegria”. Talvez nela, e somente nela, propõe ele, se encontre “o núcleo central de toda criação”.

Veronica Stigger

 

O cinema Gloria, com sua fachada retrô também ganha atenção.

 

 

 

 

 

 


Criado e concebido para a dOCUMENTA (13), Doing Nothing Garden (2010-2012) foi removido quando a exposição terminou. Tendo sido feito de materiais reciclados, ele completou sua vida sendo reciclado. O que resta, no entanto, é a força de sua mensagem. Através de nossas memórias e reflexões, a obra pode continuar a oferecer maneiras de pensar sobre como nós – como uma espécie, como sociedades e como indivíduos – podemos nos renovar, nossas circunstâncias e nossos ambientes ao não agir – sem fazer nada, não esforçando-se para cumprir nossos potenciais ou para evitar os desastres ameaçados por todos os nossos comportamentos que satisfazem o potencial.

Doing Nothing Garden, de Song Dong


 

“Kassel no invita a la lógica, de Enrique Vila-Matas” por Patricia Gutiérrez


Enrique Vila-Matas 🇪🇸 (1948-) é um premiado escritor catalão, nascido em Barcelona. As suas obras são uma mescla de ensaio, crónica jornalística e novela. A sua literatura, fragmentária e irónica, dilui os limites entre a ficção e a realidade. Em 1968 foi viver em Paris, autoexilado do governo de Franco e à procura de maior liberdade criativa.