“De onde vem a sua paixão por desaparecer?”

Neste que é o sexto livro de Enrique Vila-Matas, autor catalão traduzido por José Geraldo Couto e publicado no Brasil pela Cosac Naify, vemos a sua fixação por desaparecer, não ser ninguém, a atração pelo abismo, pelo nada, ser explorada de maneira radical. Na trama, encontramos Andrés Pasavento em um momento de instabilidade emocional: abandonado pela esposa, perdeu a filha de 15 anos e os pais, que se suicidaram no Rio Hudson. O personagem, um romancista medianamente conhecido, acaba de ser convidado para um encontro literário, em Sevilha, mas no meio do percurso decide sumir, desaparecer da vista dos conhecidos. Ele passa a inventar relatos ficcionais sobre seu passado ao mesmo tempo que persegue os rastros do autor suíço Robert Walser (1878-1956) que viveu o resto de seus dias num manicômio, onde escreveu microtextos, sem nunca publicá-los. “a mais obscura das estrelas da literatura”.

O livro está dividido em quatro partes:

I – O desaparecimento do sujeito
II – O que se dá por desaparecido
III – O mito do desaparecimento
IV – Escrever para se ausentar

“E eu, com quem me pareço? Certamente tenho algo de equilibrista que, numa alameda do fim do mundo, está caminhando pela beira do abismo. E acho que me movo como um explorador que avança no vazio. Não sei, trabalho em meio a trevas e tudo é misterioso. Só sei que me fascina escrever sobre o mistério de que exista o mistério da existência do mundo, porque adoro a aventura que há em todo texto que se põe em marcha, porque adoro o abismo, o próprio mistério, e adoro, sobretudo, essa linha de sombra que, ao ser atravessada, nos coloca no território do desconhecido, um espaço em que de repente tudo nos parece muito estranho, sobretudo quando vemos que, como se estivéssemos no estágio infantil da linguagem, temos que voltar a aprender tudo, com a diferença de que, quando crianças, parecia que podíamos estudar e entender qualquer coisa, enquanto que, na idade da linha de sombra, vemos que o bosque de nossas dúvidas nunca se tornará claro e que, além disso, o que vamos encontrar a partir de então serão apenas sombras e trevas e muitas perguntas.”

Solidão, loucura, silêncio, liberdade.

A aparição midiática do escritor é a antítese da essência de seu ofício.

“Se uma pessoa busca o sucesso, só tem dois caminhos, ou o consegue ou não o consegue, e ambos são igualmente ignomniosos” — Imre Kértesz

“Todos esses mortos ao nosso redor, onde sepultá-los senão na linguagem?” – Adonis

“gente que se veste com as roupas do amanhã e as acha apertadas.”

“noções de utopia, catástrofe e vazio metafísico, conceitos fundamentais para compreender a Europa Central.” (p. 51) – Barthes falava da utopia de um mundo que estivesse “isento de sentido”, de um mundo em que se pudesse viver com a ausência de todo signo. 

“Ignoro se a música sabe desesperar da música e o mármore do mármore, mas a literatura é uma arte que sabe profetizar aquele tempo em que já terá emudecido, e encerniçar-se com a própria virtude e enamorar-se da própria dissolução e cortejar seu fim.” – Borges

“O que não é estranho, é invisível” – Paul Valéry

“desaparecer completamente era tarefa para titãs que ainda não haviam nascido.”

“não entendemos nada das ruínas até o dia em que nós mesmo nos convertemos nelas”

“A verdade é que a vida continua igual. Mas sem mim.”

“… ver meu novo eu convertido num simples escombro neuroquímico”

sentimento refinado de mal-estar / tendência irrefreável a me mover nas regiões inferiores / o desespero de quem já nada espera / deslizamento rumo ao silêncio / um estado de desengonçada ansiedade / ânsias de subelevação e de escândalo / um erro cósmico / tema do desconcerto / eclipse do sentido / um tipo de verdade indefinida

“Depois de tudo, se hoje tenho alguma certeza, é a de que há uma grande injustiça no trabalho artístico. Escreve-se com a angústia de se ver desonrado por uma obra fracassada. O fracasso de uma obra supõe uma grande vergonha pessoal, porque o sujeito não pôde demonstrar nem sua inteligência nem seu talento. Ainda por cima o sujeito fica como um vulgar ambicioso, um arrivista de meia-tigela. A angústia domina, portanto, a realização da obra artística, mas o pior não é isso, o pior não é quando vem o fracasso, mas sim quando a obra resulta mais ou menos bem-sucedida e consegue aplausos e, mesmo assim, não se obtém de tudo isso nem sequer uma satisfação íntima. É que, na verdade, não há nada ali no reconhecimento, nada. Uma obra de sucesso vive sua própria vida, existe em alguma parte, à margem, e pouco pode fazer pela vida de seu autor.”

“a dor mais intensa não era a da infelicidade, mas a incapacidade de tender para a felicidade.”

“…no mundo de hoje, o único lugar que restava a um verdadeiro poeta era o manicômio.”

“os manicômios, segundo Canetti, são os conventos de nossa época.”

“Um ser dissociado da vida comum, destilando em solidão uma literatura originalíssima.”

“Um amante dos escritores de rostos secretos e da discrição na literatura.”

“…um precário Frankenstein das lembranças, isto é, quando era um quebra-cabeças de diversas memórias pessoais que conviviam entre si…”

“sabia que os supostos enlouquecimentos de personagens como Hölderlin, Nietzsche, Artaud ou Walser não eram enlouquecimentos, mas antes extravagantes discursos literários que escolheram um modo pouco comum, e provavelmente mais lúcido, de se comunicarem.”

“Tenho uma doença mental difícil de definir. Ao que parece é incurável, mas não me impede de pensar no que me apraz, de ser amável com as pessoas ou desfrutar as coisas, como uma boa comida, por exemplo. Aqui, diante da cidade, como um baluarte, escrevi uma nova série de poemas. Pensei na beleza da palavra “baluarte”.”

“…em seu perpétuo movimento, falava da errância fúnebre na qual viajam os nomes.”

“O doutor em psiquiatria que ficou encolhido e depois adormecido naquela cama de hotel tinha quatro pais, oito avós, duas infâncias, duas juventudes e duas idades maduras, dois pais afogados, um casamento falido, uma filha morta, um passaporte, um urso babão no interior de si mesmo, uma tripla identidade que era uma carga pesadíssima, uma só escrita (privada), nenhum amor nem alegria alguma, ou talvez só uma, essa escrita privada que afirmava a beleza de sua infelicidade.”

“…um desses dias preguiçosos e aparentemente inúteis nos quais nossas convicções mais estritas se relaxam e se convertem numa agradável indiferença.”

“o mito do desaparecimento não funciona se não estiver acompanhado pela ideia de um reaparecimento…”

LOUCURA
Não estou aqui para escrever, mas para enlouquecer.

“uma obra indefinidamente dilatável, elástica, desprovida de esqueleto”

“Quase sem me dar conta, eu viera me aproximando – diria até que fisiscamente – pouco a pouco dele. Havia me aproximado por meio de sua lenda e da leitura de seus livros, mas também me aproximara – de forma quase imperceptível para mim mesmo – de seu pa+is, de suas paisagens e finalmente do próprio homem,”

“Há dias em que é seu ser como carros fúnebres que vão a toda parte menos ao cemitério. E outros nos quais o que é seu são textos, ensaios errantes, microgramas, furtivas conversações com um botão, ilusórios papeizinhos, pequena prosa, tentativas de escrever para se ausentar, cigarros efêmeros e coisas do gênero.”

“…escolhi me mover mais um pouco nas trevas, como se esta fosse uma estrada ou trilha escura que se oferecia a mim através da dúvida.”

“Duvidar é escrever” – Marguerite Duras

“Há algo mais alegre que a fé num deus doméstico?”

“Um escritor que não escreve é, de fato, um mosntro rondando a loucura.” – Franz Kafka

“Não é culpa minha que Deus exista. (…) Do modo como Deus nos tratou, vê-se muito bem que é um homem.”

“O penoso do sucesso é que ele sempre é tirado do outro. Só podem gozá-lo os inconscientes, as mentes obtusas que não entendem que entre os frustrados sempre há seres superiores a eles.”

“… os outros nos obrigam sempre a ser como eles nos veem ou como querem nos ver. Nesse sentido, a presença ou companhia dos outros é perniciosa, reprime a plena liberdade de que deveríamos dispor para nos construirmos uma personalidade e uma identidade adequada a nossa forma de ver a nós mesmos. Pensar que somos o que cremos ser é uma das formas da felicidade. Mas aí estão sempre os outros para nos ver de outra maneira e nos impedir a construção de nossa felicidade iludida e, junto com isso, a construção de nossa personalidade favorita, muitas vezes mais complexa, por certo, que a de um personagem de ficção.”

“Estive por um longo tempo absorto nessa manobra, que consistia em ir da luz à sombra e vice-versa.”

“Não somos daqui. E só a literatura parece se ocupar com seriedade de nosso espanto.”

isso que está tão abaixo da nossa dignidade acaba por ser nosso destino” 

“Passei o dia pensando em minha filha Nora. Na realidade, nunca pude me acostumar à ideia de sua morte. Na realidade Nora foi desde então o eixo central da minha vida atormentada. Ainda que silenciosamente, sua morte foi o que mais contribuiu para o meu afastamento do mundo. (…) O pior dia da minha vida. Ninguém sabia o caminho do cemitério.”

“Sempre quis ser escritor para explicar que, embora não entendamos nada, a literatura dá sentido a tudo.”

“Eu me contradigo? Muito bem, me contradigo” – Walt Whitman, considerava que agir assim era um estimulante sintoma de que o sujeito é amplo e contém multidões. Para o aforista estaduniense Yogi Berra, era chegar a uma bifurcação no caminho e tomar as duas direções. Para o gato de Schrodinger era o paradoxo quântico de estar vivo e morto ao mesmo tempo.”

“(…) a escrita não é senão uma longa e lenta aprendizagem.”

“na busca das causas da tragédia que alcança a todos, Kafka sempre acabava descobrindo que, por trás de tanta miséria e desgraça, se encontrava uma grande organização

“pensassem o que pensassem os demais, para mim ficava cada vez mais evidente que havia no mundo uma rede de coincidências que não eram casualidades, mas antes levavam à suspeita de que em algum lugar e havia uma relação que, de quando em quando, cintilava entre um tecido esgarçado.”

“a tensão metafísica em que vive o homem moderno quando vê que é tão impossível crer em Deus como viver sem ele.”

“A realidade me perturba, se intromete”

“Também com a lembrança de uma filha se podem queimar os navios.”

“Não aspiro a ser o autor de mais nada, só o responsável por uns quantos papéis de deverão ser chamados papeizinhos da solidão.”


Enrique Vila-Matas 🇪🇸 (1948-) é um premiado escritor catalão, nascido em Barcelona. As suas obras são uma mescla de ensaio, crónica jornalística e novela. A sua literatura, fragmentária e irónica, dilui os limites entre a ficção e a realidade. Em 1968 foi viver em Paris, autoexilado do governo de Franco e à procura de maior liberdade criativa.