No calor de um subúrbio carioca, um garoto cresce em meio a partidas de futebol, conversas sobre terreiros e o passado de seu pai, um médico na década de 1970. Na adolescência, ele recebe em casa um menino apadrinhado de seu pai, que morre tempos depois num episódio de agressão. O garoto cresce e esse passado o assombra diariamente, ditando os rumos de sua vida.

Até onde aquela primeira experiência amorosa nos molda como seres humanos? Onde habita a potência afetiva que permite com que aquele sentimento não se perca nos emaranhados da memória? É o amor, afinal, o sentimento que define nossa humanidade?

São questões assim que borbulham na cabeça do leitor ao percorrer as curtas páginas de O Amor dos Homens Avulsosromance publicado em 2016 pela Companhia das Letras e que foi finalista do prêmio Oceanos em 2017.

O romance de Victor Heringer — jovem e potente escritor morto em 2018 — é de uma ternura tremenda. Heringer, dono de uma prosa fluente e maleável, além de uma visão derrisória da vida, o autor demonstra pleno domínio na construção de cenas e personagens.

Imagem de seis fotos 3×4 do próprio autor, no início do livro

Narrado em primeira pessoa, O Amor dos Homens Avulsos é o relato que busca resgatar as lembranças adolescentes de Camilo e o seu amor juvenil, Cosme. Camilo é um jovem criado na aba protetora dos pais e vive em situação confortável no bairro mítico do Queím, no Rio de Janeiro dos anos 70. Situação muito diferente dos demais amigos de infância, todos marcados — na psicologia e na carne — pela precariedade de suas vidas.

Com uma deficiência física que dificulta a mobilidade, Camilo é o “aleijado da turma”, e se movimenta com o auxílio de muletas, o que lhe torna um menino esquivo, observador e recluso. Tudo na sua vida está fincado no rotineiro, na repetição dos seus hábitos. O choque que lhe tira dessa letargia é a chegada de Cosme.

É nesse momento que Camilo defronta-se com uma incursão antes completamente desconhecida por ele. A amizade que se formata entre os dois vai tomando moldes mais íntimos até que acontece o momento em que ambos veem nascer entre eles um amor inocente e sincero — como todos os primeiros amores.

Ao mesmo tempo que a potência da paixão surge junto aos dois, o choque de um sentimento assim surgindo entre dois garotos brota em paralelo. “Eu não me sentiria seguro nunca mais. Descobri na hora, isso. Meu coração começou a tossir ar gelado nas veias”, diz Camilo logo após o primeiro beijo em Cosme. Essa insegurança vinda de uma relação inabitual se justifica na parte final do romance.

A descoberta do protagonista é feita de contrastes: o amparo de um romance, com o desamparo da não-aceitação sobre quem compõe esse romance. “Todo idílio termina em tempestade”, diz o narrador a certa altura do seu relato. O idílio de Camilo e Cosme, não foi diferente. O ingênuo e curto amor dos adolescentes é interrompido por uma desgraça. A injustiça e a crueldade do acontecimento é algo que atravessa o leitor, e deixa uma marca indelével em Camilo. “Cosmim desapareceu e eu fiquei, como um tentáculo amputado de um polvo.”

Esse sentimento de incompletude talvez esteja na raiz dessa vontade de Camilo de resgatar suas próprias lembranças. É na memória que ele guarda a única relação bela que lhe coube viver no mundo. Relembrá-la, já envelhecido, é uma forma de tentar perceber que o luto, “que é lento e quieto sobre a face das águas”, também “é fértil”.

O romance também apresenta não só a costura dos sentimentos entre os dois protagonistas, mas também um mapa afetivo da cidade do Rio de Janeiro da década de 1970. Os bairros e as suas transformações, sempre indicadas pelo ir e vir temporal delimitado pelo narrador, servem como um sintoma das mutações que os personagens passam.

desenho infantil representando o local narrado por Camilo, personagem principal

Descobrir uma outra forma de amar, de sentir, de estar no mundo, e enfrentar as vicissitudes dessa descoberta, saber o quão trágico e cruel isso também pode ser, ao mesmo tempo que se equilibra para tomar rédeas da vida, uma experiência que pode revelar-se perturbadora. No romance de Henriger, amor e ódio não estão em zonas opostas. Esses sentimentos encontram-se no mesmo lugar e podem manifestar-se através dos mesmos desejos.

Henriger forja na linguagem um caminho equilibrado para expor os afetos dos seus personagens. Seu romance é um catálogo de afetividades que explodem em múltiplas direções. A maturidade da sua escrita é a confirmação de que estávamos vendo nascer um dos mais importantes escritores da nossa geração. Seus dois romances — o primeiro foi Glória, pelo qual ganhou um prêmio Jabuti — apresentam uma qualidade pouco vista.

O Amor dos Homens Avulsos é uma reflexão sobre o que é estar no mundo, e os modos de existir nele. Reflexão feita com uma elegância que experimenta o deslocamento de perspectivas para nos fazer perceber que “o primeiro amor é único. Os anos, o sexo, e as pequenas construções (filho, casa própria, poupança) fazem aceitar mais fácil as cópias desbotadas que a gente diz amar ao longo da vida, mas até a nossa cova aberta, esperando, fala daquela ausência”.

sol, símbolo importante

Fugindo das construções empobrecidas sobre o amor, a riqueza e o poder avassalador da prosa de Henriger está no fato de que o leitor inicia a leitura repleto de dúvidas e sai dela recheado de ternura por suas próprias experiências afetivo-amorosas. O resgate de Camilo pelo seu primeiro amor impulsiona o leitor a perceber como ele guarda as lembrança dos seus próprios amores.