✨ Poesia

Exibindo página 41 de 43

Como nuvem eu vagava em solidão

William Wordsworth

Como nuvem eu vagava em solidão
A flutuar acima de colinas e vilas
Quando bem vi dourada multidão,
Uma série de narcisos em fila;
Ladeada ao lago, à sombra d’árvores,
Vibrando e dançando na brisa dos ares.

Contínuos como estrelas que brilham
E cintilam alto na Via Láctea,
Sem fim e em linha se estendiam
Ao longo da margem áquea:
De relance vislumbrei dez mil
Suas cabeças em dança primaveril.

Ao lado as ondas dançavam superadas
Por todos eles em brilho e glosa:
Um poeta só pode ter alma bem-humorada,
Em companhias tão prazerosas:
Olhei – e olhei – mas pouco pensei
Na riqueza do espetáculo que me dei:

Depois, quando solto no sofá
Em modo pensativo ou avião
Eles passam pelo meu íntimo olhar,
O que é uma benção da solidão;
Meu gáudio coração é preenchido,
E dança com seus narcisos.

I wandered lonely as a cloud (1815)
William Wordsworth
[tradução de Julia Medrado]


I wandered lonely as a cloud (1815)
William Wordsworth
I wandered lonely as a cloud
That floats on high o’er vales and hills,
When all at once I saw a crowd,
A host, of golden daffodils;
Beside the lake, beneath the trees,
Fluttering and dancing in the breeze.
Continuous as the stars that shine
And twinkle on the milky way,
They stretched in never-ending line
Along the margin of a bay:
Ten thousand saw I at a glance,
Tossing their heads in sprightly dance.
The waves beside them danced; but they
Out-did the sparkling waves in glee:
A poet could not but be gay,
In such a jocund company:
I gazed—and gazed—but little thought
What wealth the show to me had brought:
For oft, when on my couch I lie
In vacant or in pensive mood,
They flash upon that inward eye
Which is the bliss of solitude;
And then my heart with pleasure fills,
And dances with the daffodils.


Outras traduções:
– Miscelânia cultural (inglês) link
– Los narcisos (espanhol) link


Imagem de capa:
Daffodils at Ullswater da artista inglesa Margaret Ellis


William Wordsworth 🇬🇧 (1770 – 1850) foi o maior poeta romântico inglês que, ao lado de Coleridge, ajudou a lançar o romantismo na literatura inglesa com a publicação conjunta, em 1798, das Lyrical Ballads.

 

Dos cavalos da inconfidência

Cecília Meireles

Romance LXXXIV ou Dos Cavalos da Inconfidência

Eles eram muitos cavalos,
ao longo dessas grandes serras,
de crinas abertas ao vento,
a galope entre águas e pedras.

Eles eram muitos cavalos,
donos dos ares e das ervas,
com tranquilos olhos macios,
habituados às densas névoas,
aos verdes, prados ondulosos,
às encostas de árduas arestas;
à cor das auroras nas nuvens,
ao tempo de ipês e quaresmas.

Eles eram muitos cavalos
nas margens desses grandes rios
por onde os escravos cantavam
músicas cheias de suspiros.

Eles eram muitos cavalos
e guardavam no fino ouvido
o som das catas e dos cantos,
a voz de amigos e inimigos;
– calados, ao peso da sela,
picados de insetos e espinhos,
desabafando o seu cansaço
em crepusculares relinchos.

Eles eram muitos cavalos,
– rijos, destemidos, velozes –
entre Mariana e Serro Frio,
Vila Rica e Rio das Mortes.

Eles eram muitos cavalos,
transportando no seu galope
coronéis, magistrados, poetas,
furriéis, alferes, sacerdotes.

E ouviam segredos e intrigas,
e sonetos e liras e odes:
testemunhas sem depoimento,
diante de equívocos enormes.

Eles eram muitos cavalos,
entre Mantiqueira e Ouro Branco
desmanchado o xisto nos cascos,
ao sol e à chuva, pelos campos,
levando esperanças, mensagens,
transmitidas de rancho em rancho.

Eles eram muitos cavalos,
entre sonhos e contrabandos,
alheios às paixões dos donos,
pousando os mesmos olhos mansos
nas grotas, repletas de escravos,
nas igrejas, cheias de santos.

Eles eram muitos cavalos:
e uns viram correntes e algemas,
outros, o sangue sobre a forca,
outros, o crime e as recompensas.

Eles eram muitos cavalos:
e alguns foram postos à venda,
outros ficaram nos seus pastos,
e houve uns que, depois da sentença
levaram o Alferes cortado
em braços, pernas e cabeça.

E partiram com sua carga
na mais dolorosa inocência.

Eles eram muitos cavalos.
E morreram por esses montes,
esses campos, esses abismos,
tendo servido a tantos homens.

Eles eram muitos cavalos,
mas ninguém mais sabe os seus nomes
sua pelagem, sua origem…
E iam tão alto, e iam tão longe!
E por eles se suspirava,
consultando o imenso horizonte!
– Morreram seus flancos robustos,
que pareciam de ouro e bronze.

Eles eram muitos cavalos.
E jazem por aí, caídos,
misturados às bravas serras,
misturados ao quartzo e ao xisto,
à frescura aquosa das lapas,
ao verdor do trevo florido.
E nunca pensaram na morte.
E nunca souberam de exílios.
Eles eram muitos cavalos,
cumprindo seu duro serviço.

A cinza de seus cavaleiros
neles aprendeu tempo e ritmo,
e a subir aos picos do mundo…
e a rolar pelos precipícios…

In: Romanceiro da Inconfidência (1953)


Cecília Meireles 🇧🇷 (1901-964), foi poetisa, jornalista e professora, nascida no Rio de Janeiro e considerada umas das maiores escritoras do Brasil. Escreveu sobre educação e fundou a primeira biblioteca infantil do país. Publicou mais de 50 obras. Em 1938, recebeu o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras. Lecionou Literatura na UFRJ e na Universidade do Texas. Foi Doutor Honoris Causa pela Universidade de Delhi. Sua obra poética é um a busca do eterno, um trabalho do luto, com essências e valores transcendentais.


 

Passagem da Noite

Carlos Drummond de Andrade

Passagem da Noite

É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.
E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente a noite.

Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos.
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, in A ROSA DO POVO (Liv. José Olympio, Rio de Janeiro/S. Paulo, 1945)