tag . fotografia

Exibindo página 4 de 5

A Câmara Clara

Roland Barthes

Neste clássico francês, Roland Barthes estabelece uma correlação entre os processos ópticos de reprodução da imagem para nos mostrar que sem a intervenção pessoal, subjetiva, do observador — que pode ver nela muito mais do que o registro realista ou a mensagem codificada —, a fotografia ficaria limitada ao registro documental. A câmara clara não é, portanto, um tratado sobre a fotografia enquanto arte nem uma história sobre o tema. Absolutamente original, Barthes se lança à tarefa de decifrar o objeto artístico, a “obra” entendida como mecanismo produtor de sentido.

Nicéphore Niépce, La table servie, la première photographie, vers 1822, musée N. Niépce Châlons sur Saône.

Na época (no início deste livro: já está longe) em que me interrogava sobre minha ligação com certas fotos, eu julgava poder distinguir um campo de interesse cultural (o studium) e essa zebrura inesperada que às vezes vinha atravessar esse campo e que eu chamava de punctum. Sei agora que existe um outro punctum (um outro “estigma”) que não o “detalhe”. Esse novo punctum, que não é mais de forma, mas de intensidade, é o Tempo, é a ênfase dilaceradora do noema (“isso foi”), sua representação pura. Em 1865, o jovem Lewis Payne tentou assassinar o secretário de Estado americano, W. H. Seward. Alexander Gardner fotografou-o em sua cela; ele espera seu enforcamento. A foto é bela, o jovem também: trata-se do studium. Mas o punctum é: ele vai morrer. Leio ao mesmo tempo: isso será e isso foi; observo com horror um futuro anterior cuja aposta é a morte. Ao me dar o passado absoluto da pose (aoristo), a fotografia me diz a morte no futuro. O que me punge é a descoberta dessa equivalência. Diante da foto de minha mãe criança, eu me digo: ela vai morrer: estremeço, tal como o psicótico de Winnicott, por uma catástrofe que já ocorreu. Que o sujeito já esteja morto ou não, qualquer fotografia é catástrofe.

 


Roland Barthes 🇫🇷(1915-1980) foi um escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês. Formado em Letras Clássicas e Gramática e Filosofia na Universidade de Paris, fez parte da escola estruturalista, influenciado pelo lingüista Ferdinand de Saussure. Um dos mais importantes intelectuais franceses, foi professor da École Pratique des Hautes Études e do Collège de France. Além de colaborações para diversos periódicos (Esprit, TelQuel etc.), é autor de, entre outras obras, O grau zero da escritura (1953), Mitologias (1957), Crítica e verdade (1966), Sistema da moda (1967), O prazer do texto (1973) e Fragmentos de um discurso amoroso (1977).

Nadja

André Breton

Título-chave no contexto surrealista e narrativa mais importante de André Breton, formando uma trinca com Les vases communicants (1932) e L’amour fou (1937), este romance, escrito em 1928, encena o encontro entre realidade e fantasia, característica desta vanguarda. Nos arredores de Paris, pobremente vestida, uma mulher caminha sem rumo certo: “Vai de cabeça erguida, ao contrário de todos os passantes. Tão frágil que mal toca o solo ao pisar. Um sorriso imperceptível erra talvez em seu rosto”. Este é o primeiro encontro do personagem-narrador-autor de Nadja, com a mulher que empresta o nome ao livro. Os encontros se repetirão, entre a casualidade e a necessidade, por cerca de dez dias.

Nadja logo se firmará como uma das grandes obras do surrealismo europeu, capaz de confundir os limites entre vida e literatura, ao passo que a personagem homônima também se eterniza a partir da obra. Houve de fato uma Nadja na vida de André Breton, como provam as cartas da época: ela se chamava Léona Delcourt e nasceu em 1902 nos arredores de Lille. Léona viajou na juventude para Paris, onde trabalhou como balconista, dançarina e prostituta. Em algum momento dos anos 1920, o acaso, tão ao gosto surrealista, a aproxima de André Breton.

“André? André?… Você vai escrever um romance sobre mim. Garanto.
Veja só: tudo se esvai, tudo desaparece. É preciso que reste algo de nós (…)”.

Poucos dias depois, Nadja sai de cena e, no romance, torna-se menos presença que recordação. O narrador revela que foi internada após distúrbios no hotel onde morava. A partir daí o contato se rompe, perdemos o rastro de Nadja e resta a evocação de André:

“Já que existes, como só tu sabes existir, talvez não fosse necessário que este livro existisse”.

Recentemente, a escritora holandesa Hester Albach investigou a história de Nadja. A busca teve como resultado o livro Léona, heroína do surrealismo, publicado em 2009 e sem tradução para o português. No romance de 1926, André entrega a Nadja dois livros: Os passos perdidos e o Manifesto do surrealismo. Nadja observa os dois sobre a mesa e questiona: Os passos perdidos? Mas não existe passo perdido”. Passos que são, ao mesmo tempo, o passo errante da Nadja de Breton e o de Léona Delcourt.

Num local frequentado por prostitutas e cartomantes, o narrador mergulha na convivência efêmera e tumultuada com a personagem-título, em meio ao labirinto urbano parisiense. Nadja, uma encarnação contemporânea do enigma e do mito, representa o princípio de liberdade em forma feminina e uma porta para além da banalidade. A atmosfera onírica registra os fragmentos do dia-a-dia em imagens produzidas a partir de destroços da realidade imediata, que buscam a correspondência dos objetos cotidianos com o mundo interior.


Algumas outras edições

Na capa deste post, usamos a edição francesa da Gallimard. As três edições brasileiras têm tradução de Ivo Barroso, apresentação de Eliane Robert Moraes, além de fortuna crítica, incluindo ensaios de Walter Benjamin e Maurice Blanchot, e bibliografia específica.

“(…) the idea that freedom, acquired here on earth at the price of a thousand — and the most difficult — renunciations, must be enjoyed as unrestrictedly as it is granted, without pragmatic considerations of any sorte, and this because human emancipation — conceived finally in its simplest revolutionary form, which is no less than human emancipation in every respect, by which I mean, according to the means at every man’s disposal – remains the only cause worth serving. Nadja was born to serve it (…)”

Paranoia

Roberto Piva, Wesley Duke Lee

Publicado em 1963 e esgotado durante um longo tempo, o livro reúne 19 poemas de Roberto Piva e fotografias do artista plástico Wesley Duke Lee. Desde sua primeira edição, Paranoia compõe uma das mais fortes parcerias artísticas que a cidade de São Paulo já inspirou. A última edição, de 2009, conta com prefácio de Davi Arrigucci Jr.


Na época de seu lançamento, Paranoia teve o destino dos livros que nadam contra a corrente. De um lado, por sua índole contestadora, incomodou os críticos mais conservadores. De outro, por seu individualismo anárquico, confrontou a vanguarda literária mais programática na época, o movimento concretista. Em compensação, seus poemas foram cultuados por todos os leitores e artistas receptivos a uma sensibilidade profundamente libertária.

Paranoia é o mais eloquente exemplo da primeira fase da carreira de Piva, na qual o ímpeto para a transgressão talvez seja a característica predominante. Muitas tradições literárias entrecruzam-se nesta obra. Entre elas, vale citar a da meditação andarilha pela cidade, consagrada com Baudelaire e cuja influência varreu o mundo, alcançando a metrópole periférica de Mário de Andrade e do modernismo da primeira geração. Vale registro também o influxo dos poetas beat norte-americanos, com sua apologia do desejo irrefreado, seu destemor diante da alternância entre os registros alto e baixo, sua livre associação de ideias e referências e sua adesão ao escape proporcionado pelas drogas. “Uma visão alucinatória de São Paulo”, foi como Piva definiu seu livro.

São Paulo por Wesley Duke Lee (1963)

Nascido em 1937, Roberto Piva teve seus primeiros poemas reunidos na “Antologia dos Novíssimos”, em 1961. Depois vieram oito livros de poesias, sendo “Paranoia”, de 1963, um dos mais conhecidos. Em 2000, o Instituto Moreira Salles relançou a obra, ilustrada com fotografias de Duke Lee, que, em 2009 ganhou nova edição.

O volume resulta em um alinhamento perfeito entre os poemas delirantes e as imagens caóticas. Piva transporta o lirismo paulistano para versos soltos, longos, sem métrica, rimas ou regularidades. Já no começo da década de 1960, fala de homossexualismo, marginalidade e desigualdade social. Descreve cenas e pensamentos desconexos que parecem se encontrar no caos urbano, fugindo do concretismo que marcava a época.

por Wesley Duke Lee (1963)

As passagens são pontuadas por referências à metrópole — que, mais do que mera referência espacial, parece ser parte ativa desses sentimentos e fatos. Diz: “na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha alma”. Ou ainda “meus êxtases não admitindo mais o calor das mãos e o brilho/ platônico dos postes da rua Aurora comichando nas omoplatas/ irreais do meu Delírio”.

por Wesley Duke Lee (1963)


Roberto Lopes Piva 🇧🇷 (1937) poeta polêmico nascido em São Paulo, figura ativa no meio cultural paulistano desde a juventude, quando começou a publicar versos contra os meios de repressão ao indivíduo, desde o político-ideológico até o sexual. Colaborador em vários jornais da imprensa alternativa, como o Patata ou o Versus, escreveu também para revistas como a Singular e Plural e a Rolling Stones.