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14ª Festa Literária de Paraty

🇧🇷 Rio de Janeiro

Este ano eu precisava ir a 14ª Flip – Festa Literária Internacional de Paraty, de qualquer jeito. Só consegui dois dias, mas justamente os principais e antecipadamente comprei ingressos e já reservei pousada. Aqui vou escrever sobre os momentos que mais me marcaram do evento, que teve público de 25 mil seres humanos e 39 escritores. As ruas empedradas se enchiam de gente com sacolas de livros, copinhos de café perfumado e doces poéticos. Havia música ao vivo (jazz, chorinho, MPB) em cada esquina… Barquinhos iam e chegavam, crianças brincavam barulhentas e o sol iluminava a tudo. À noite, vinho regava as conversas literárias. A poeta Ana Cristina César foi a grande homenageada da festa e por toda a cidade ouvíamos seus melhores versos declamados, berrados ou sussurrados lá e cá. O azul tão blue na poética dela foi a cor das artes da Flip 2016, ilustradas por Alexandre Benoit; e esse azul era de um tom vivo, fundo e bom, como Paraty:

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Svetlana Alexievich, Prêmio Nobel 2015 (Foto: Walter Craveiro/Flip)

Svetlana Alexievich, Prêmio Nobel 2015 (Foto: Walter Craveiro/Flip)

No sábado, principal dia, a grande estrela era a Prêmio Nobel de Literatura Svetlana Alexiévitch que atendeu as expectativas com uma participação afetuosa e emocionante.  A bielorrussa falou do amor e comoveu a todos com seus breves relatos e explicações de como pessoas simples se abriam com ela, contando coisas que às vezes nunca tinham contado a ninguém. A guerra não tem rosto de mulher foi o título mais vendido da Flip, sendo Vozes de Tchernóbil o terceiro desse ranking. No final ela disse que não pretende mais escrever sobre guerras: “Não consigo mais entender que uma pessoa seja morta porque pensa diferente.” Eu, que a assistia do lado de fora, por um telão gigante e tradução simultânea do russo, gostei particularmente da parte em que ela dizia acreditar que em alguns séculos vamos ser considerados seres primitivos. Ela falou também de como é inútil lutar contra a natureza. Foi um grande privilégio poder ouvir uma autora premiada discursar tão tranquilamente sobre a simplicidade e sobre o sofrimento.

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Kate Tempest (Foto: Walter Craveiro/Flip)

Depois a rapper, poeta e escritora britânica Kate Tempest foi aplaudida de pé! Fazia muito tempo que eu não ouvia alguém declamar seus próprios poemas com tanta força e sinceridade. Estou agora muito curiosa por conhecer melhor o trabalho dela, porque aqueles minutos em que a vi pelo telão, a plenos pulmões em Hold On (inédito e oferecido como um presente), ficarão pra sempre comigo. Andando pelo palco, ela declamou dois poemas com intensas performances gestuais. O público todo ficou quietinho, assustado com a força de Kate. Ela é conhecida por seu street-style londrino e é praticante de slam poetry (ou batalha de mcs). Ela já lançou álbuns, coletâneas, escreveu peças de teatro e um romance Os tijolos nas paredes das casas que me arrependi de não ter comprado ali mesmo. Diogo jura que já havia me falado dela há três anos, mas não me lembro. Ela foi a grande “descoberta” da Flip 2016 para mim e acho que para muita gente, pois durante a apresentação, todo mundo estava de boca aberta e ouvidos mais abertos ainda!

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Karl Ove Knausgård, durante o Encontro (Foto: Walter Craveiro/Flip)

Na sexta, 1 de julho, o tão esperado encontro com Karl Ove Knausgård, motivo maior da minha ida ao evento, teve uma duração que me pareceu muito rápida. Elegante, ele veio com um terno pardo que devia ser linho, uma camisa branca e botas de couro marrom. Parecia à vontade, falava em inglês, mas distante, raramente olhava para o público. Eu havia chegado em cima da hora, estava um pouco afobada, ainda tensa pela possibilidade de me atrasar. Também preocupada com o check-in na pousada, que até então ainda não havíamos feito. Do lugar onde me sentei, mal podia ver suas feições, salvo quando se levantou para ler uma parte do livro. Depois ele falou sobre vergonha, sobre como foi escrever sobre questões tão íntimas como sexo ou a morte. O tempo todo ele parecia calmo, frio, controlado. O entrevistador comentou sobre ele estar escrevendo um diário, que entendi ser um “diário do mês de junho” em que constaria sua passagem pelo Brasil e até o encontro em questão. O entrevistador pareceu se emocionar: o autor olhava diretamente para ele o tempo todo, era como se estivessem sozinhos. Dentre as perguntas pobrinhas do público, perguntaram até se ele havia experimentado cachaça. Nesse momento lamentei minha falta de espírito em ter escrito algo que o tirasse da suposta indiferença. Tudo não passa de defesa ou negação, como ele próprio disse. Mas eu estava arrebatada, cansada da viagem e até desconfortável. Não havia entendido se haveria sessão de autógrafos e, como disse, eu estava preocupada com a pousada. Então, ao final do encontro, voltamos para o carro, ansiosos por garantir nossa estadia na cidade. Tínhamos acabado de chegar. Depois, quando “caí em mim” e entendi que havia perdido a oportunidade de encontrá-lo mais de perto, já era tarde demais. A vida é cheia desses desencontros. Me conformei, enfim.

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“Eu sou aquela mulher que fez a escalada da montanha da vida, removendo pedras e plantando flores”. – Cora Coralina

No sábado, fim de noite, fomos ver uma exibição ao ar livre do Cine Petrobrás. Meio longa, meio documentário, a produção contava a história de uma poetisa brasileira, a goiana Cora Coralina (1889-1985) ou Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, a doceira que adotou um pseudônimo para escrever sobre o cotidiano no interior. O diretor Renato Barbieri comentou sobre as várias fases da vida da poetisa. Fã de sua obra, ele sempre se identificou com a forma de pensar de Cora, por isso considera o documentário uma homenagem. Com cenas do cenário histórico de Goiás Velho, cidadezinha que foi a inspiração de Cora, a Casa Velha da Ponte, onde viveu a escritora, virou um ponto turístico. A própria Cora aparece em algumas cenas, mas em geral são atrizes que a interpretam em suas fases de vida, como Walderez de Barros, Teresa Seiblitz, Zezé Motta, Beth Goulart e Camila Mardila.

Um Outro Amor

Karl Ove Knausgård

No primeiro volume da série Minha Luta, A Morte do Pai, acompanhamos o processo destrutivo que levou o pai de Karl Ove Knausgård à morte, e na sequência, em Um Outro Amor, o autor fala sobre o começo do seu segundo casamento e a paternidade, que conflitava com suas ambições literárias. Talvez seja um pouco difícil explicar o magnetismo gerado pelos livros dessa série, quase não sei como a história de um homem que basicamente só fuma, lê, escreve e passeia com os filhos se tornou uma das obras mais fantásticas que já li.

“…um homem que vivia a vida no mundo das palavras.”

Com uma literatura bem pontuada, o autor ousa desafiar o que é ser homem e pai num país de primeiro mundo do século XXI. Questionando os parâmetros de masculinidade, ele percorre os caminhos rotineiros de uma vida familiar que se mostra maçante e ordinária, mas não sem apurar as pequenas pepitas de maravilhas que aparecem aqui e ali. Nem sempre é fácil perceber a mágica do corriqueiro, do comum e da suposta banalidade da vida cotidiana. Muitas vezes somos superficiais na observação do mundo que nos rodeia. Mas as digressões do autor em meio à louça suja e à desorganização de uma casa são profundas e muito francas. É impossível não sentir empatia com aquela angústia, mesmo sem viver a rotina descrita. É um livro repleto das banalidades do dia-a-dia, e que até pode parecer simples, mas não é.

pág. 251 – “…porque justamente o comum e o trivial estivessem banhados em ouro.”

Com passagens bastante descritivas e detalhadas, somos ambientados dentro da mente do autor. É como se fossemos levados para dentro do cerne do ser de Karl Ove Knausgård e passássemos e a viver sua vida conjuntamente. Ele não economiza palavras e páginas para tal. Todas as críticas e resenhas que li deste volume faziam questão de dizer que “uma conversa com amigos durante o jantar pode se estender por cem páginas“, mas eu achei essa parte particularmente especial justamente pela falta de pressa, por dar voz a todos os presentes, por fazer reverberar as histórias de terceiros dentro de sua própria história, como é na vida real. Qualquer ação é capaz de lhe arrancar algo profundo e poético, mesmo uma conversa informal entre amigos numa noite de ano novo.

“…a literatura não se resume às palavras, a literatura é aquilo que as palavras despertam em quem lê.”

Logo depois de se separar da primeira mulher, Karl Ove deixa a capital norueguesa e sozinho se muda para Estocolmo, onde começa uma nova vida, em busca de uma perspectiva estrangeira. Na Suécia, ele cultiva uma amizade profunda com Geir, outro autor norueguês com quem tece profundos e importantes diálogos sobre literatura, amizade, vida social e a diferença entre os dois países. Ao longo do livro ficava torcendo para que se encontrem e começassem a papear, já que a conversa dos dois sempre rendia algumas das melhores reflexões do livro, graças à sinceridade excruciante que mantém.

pág. 475 – “Falar com você é como fazer terapia com o diabo.”

Mas, como o próprio título entrega, a temática geral é a do amor. Uma linda e forte história de amor com a romântica Linda Boström, a poeta sueca por quem se apaixonara anos antes durante um encontro de escritores em Bishop-Arms. Fiquei especialmente emocionada porque embora o enredo romântico não seja de aventura ou proibição, como esperamos de uma digna “história de amor”, o sentimento que ali nasce é profundo, dolorido e preenche cada espaço. É arrebatador, expansivo e gera os filhos que prolongam a história e o amor familiar.

pág. 219 – “… você tem que arder como eu ardo.”

Os saltos no tempo, ensaios e flashbacks demonstram o pleno domínio do autor, capaz de conciliar a narrativa de episódios pontuais com longos afastamentos que acompanham o tempo das personagens. Na construção narrativa de Knausgård, as fronteiras entre memória e invenção são diluídas a tal ponto que a sua própria vida é recriada e ressignificada.

“…o fato de que o talento para ver não podia ser aprendido, mas era algo a que você simplesmente tinha ou não tinha acesso me condenou a uma vida na baixeza, fez de mim um dos baixos.”

Entre questões existenciais e reflexões acerca da criação literária, o que forma o romance é a conturbada e bela história de amor de um homem por sua mulher e seus filhos.

Em dado momento, Karl Ove e Linda vão a uma festa infantil na casa de conhecidos. Uma situação super comum, mas a partir da qual o autor observa cada detalhe de sua inadequação social. Passando pelo enfado de tomar parte em conversas sobre temas pelos quais não tem qualquer interesse, ele analisa os olhares, gestos, escolhas de palavras, tudo ao redor, e depois se lembra de constrangimentos passados, nos explicando muito de seu jeito pessoal e social.

pág. 44 – “… como as crianças não tem o verniz da decência e da cortesia que se encontra nos adultos.”

Karl Ove escreve de forma crua, e por “crua” não digo insensível ou agressiva, mas muito sincera. Em muitos trechos somos inundados de vergonha, comiseração e identificação.

Há uma compulsão do autor em reviver, retraçar e recontar a própria história, de criar seu próprio percurso inerte em paralelo à ação da vida. Karl nos passa sempre a sensação de buscar algo que está além do seu alcance, numa intratável insatisfação consigo mesmo, com sua vida, sua criatividade e também sua família.

A solidão, ou a necessidade dela, é um dos pontos centrais da angústia do autor, porque mesmo que a busca pelo relacionamento sempre esteja evidente e até a paixão por Linda, a sua necessidade de solidão também é marcante e permeia toda a vida da jovem família. Desde o primeiro volume, Karl Ove é um homem solitário em essência.

Não estamos tratando apenas de um relato sincero e confessional de um filho que perde o pai, no primeiro volume, ou de um homem de meia idade casado pela segunda vez, com três filhos, e que decide mudar de cidade, no segundo. O que está em jogo, paralelo a isso, é o posicionamento desse homem dentro da tradição, dentro do espaço do exercício da linguagem, a performance da criação de um estilo e de uma voz.

A Morte do Pai

Karl Ove Knausgård

Logo vi que o livro A Morte do Pai inaugurava uma obra grandiosa, best-seller na Noruega e fenômeno internacional, a série Minha Luta. Karl Ove Knausgård é o autor-rockstar por trás dessa série de seis romances autobiográficos. Cheguei até ele devido ao título. A capa também chamou minha atenção. A ideia de uma casinha vermelha isolada, um céu em iminente tormenta. Oscilando entre criação e memória, o autor explora as possibilidades da ficção contemporânea. Um livro de um escritor que narra  própria vida detalhadamente. Dá para perceber claramente que é um autor nórdico, há uma frieza muito característica. De vez em quando a literatura ocidental dá audiência para obras autobiográficas, não sem questionar o próprio fundamento literário. Muito se falou em autoficção. Karl Ove expõe escândalos familiares e vai direto à revelação de segredos. O que importa, no fim, é a forma de sua obra, é dela que nasce sua ficção. Ao embarcar numa investigação proustiana e aparentemente incansável, o autor busca reconstruir a trajetória do pai, uma figura insondável que vai à ruína, tornando-se um alcoólatra.

“Tudo deve se sujeitar à forma.
Se qualquer um dos outros elementos literários
for mais forte que a forma, como o estilo, a trama, o tema,
se algum deles prevalecer sobre a forma,
o resultado será insatisfatório”

Com a avó senil, também já dependente do álcool, ele e o irmão tentam dar praticidade à difícil tarefa de dar alguma dignidade aquele lar em luto. Em meio a tudo isso, somos levados a conhecer a juventude do autor. Uma noite de ano-novo e rebeldia, regada a cervejas proibidas, um amasso na primeira namorada, um show fracassado com a banda em um shopping. Em meio a eventos comum da vida de um adolescente, Karl Ove nos explica as estruturas de sua família e sua relação com a morte.

“Escrever é retirar da sombra a essência do que sabemos.
É disso que a escrita se ocupa.”

O conflito se dá no fato dos irmãos arrumarem a casa destruída pelo pai que morrera. O simbolismo da ordem e da limpeza é óbvio, uma forma de  liquidar do espaço físico e da memória, quaisquer resquícios da decadência familiar.

“Sentimentos são como água, sempre adquirem a forma do meio que os circunda”

Honesto e sensível, com uma escrita bastante elegante, embora simples, Karl Ove investiga também sua vida atual, aos 39 anos, pai de quatro filhos, ele tenta se ajustar à rotina, enquanto tenta escrever seu novo romance, em uma luta diária. O título original é Min Kamp 1, a tradução é de Leonardo Pinto Silva, selo  da Companhia das Letras.