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manhã e noite

Jon Fosse

Um menino está prestes a nascer. Chamar-se Johannes como o avô e será pescador como o pai. Uma vida boa, é esse o desejo de quem o traz ao mundo, embora este seja um mundo duro, ruim e cruel. Um homem, velho e sozinho, morre. Chama-se Johannes e foi pescador.

É o melhor amigo que o vem buscar rumo a esse destino onde não há corpos nem palavras, apenas tudo aquilo que se ama. Antes do regresso definitivo ao nada, Johannes revisita o museu da sua vida, longa, simples e quotidiana, confrontando-se paulatinamente com a morte num constante entrelaçamento de real e alucinação, passado e presente.

Manhã e Noite é um romance sobre o maravilhoso sonho que é viver e a aceitação do ciclo natural das coisas. Numa linguagem poética e elíptica, inovadora e despojada, Jon Fosse condensa toda uma existência em dois momentos-chave, urdindo uma reflexão encantatória sobre o significado da vida, Deus e a morte.


Jon Fosse (1959–) nasceu em Strandebarm, Noruega, e vive atualmente numa residência honorária situada nas propriedades do Palácio Real de Oslo, chamada Grotten. Escritor e dramaturgo prolífero, estreou-se em 1983 com o romance Raudt, svart, tendo recebido vários prêmios ao longo da sua carreira, entre os quais o  Internacional Ibsen, o Prêmio Europeu de Literatura e o Prêmio de Literatura do Conselho Nórdico. A sua obra, traduzida em mais de quarenta línguas, inclui romance, teatro, poesia, livros para crianças e ensaio. Prêmio Nobel de Literatura 2023

Uma temporada no escuro

Karl Ove Knausgård

Karl Ove Knausgård está com dezoito anos quando parte para uma vila no norte da Noruega a fim de dar aulas a adolescentes. Sua intenção é juntar algum dinheiro para viajar e investir na incipiente atividade de escritor. No começo tudo corre bem, mas quando o escuro toma conta dos dias de inverno, a vida começa a se complicar. A escrita de Karl Ove para de fluir, e suas empreitadas para perder a virgindade fracassam.
Com o alto consumo de álcool ele se aproxima da sombra do pai alcoólatra e resgata a temática do primeiro livro da série Minha Luta, A morte do pai. Como a narrativa não segue ordem cronológica, este volume – um dos mais arrebatadores – pode ser lido de forma independente.

A Ilha da Infância

Karl Ove Knausgård

O terceiro volume da série Minha Luta, como o próprio título já entrega, trata dos primeiros anos de vida consciente de Karl Ove Knausgård, na ilha onde viveu sua infância. Depois do primeiro A Morte do Pai e do segundo volume Um Outro Amor, A Ilha da Infância investiga, com o estilo direto e arrebatador que é característico do autor, a memória, o universo familiar e a construção da sua identidade.

E realmente a infância de Karl Ove é um prato cheio para quem se sensibiliza com o universo infantil. O menino tinha medo de nadar, medo do escuro, medo de cachorro, medo do pai — a infância pode ser um período temeroso e difícil. A austeridade e a rigidez da sua educação faziam da vida dele um tipo de suspense sem fim, que enche a todos de medo e respeito. Em várias situações somos obrigados a dividir o terror daquele pai austero e incompreensível com os irmãos Knausgård.

Pág. 336 – “…tudo precisava acontecer de acordo com a vontade dele.”

Todo o nervosismo de Karl Ove advinha da sua sensibilidade, do seu olhar já tão apurado sobre tudo e todos, mas especialmente advinha do medo de seu pai. Como na situação em que Karl Ove se desespera e sofre as consequências de usar uma touca florida na aula de natação, afinal seu pai não via nenhum problema nesse tipo de detalhe, diferente das outras crianças. Ou quando o pai se diverte às custas de brincadeiras de mau gosto, como no “jogo” de baralho em que o objetivo é recolher as 52 cartas que ele jogara pelo quarto. Ou quando é intolerante até mesmo em situações rotineiras da vida doméstica, agindo com violência e opressão. É só neste livro, no terceiro da série, que podemos conhecer melhor a família e o núcleo de formação do autor. Muitas ideias apresentadas no primeiro volume voltam agora com mais nitidez, embora tudo que cerce o pai ainda siga em quase completo mistério. Parece que nem todas as informações e histórias podem responder à pergunta que Karl Ove ainda não se podia fazer quando menino.

Pág. 364 – “…eu o odiava como só se pode odiar o próprio pai.”

Não apenas pela questão geográfica, A Ilha da Infância foi um título muito apropriado, pois ali Knausgård revisita uma espécie de terra isolada, um pequeno mundo onde fomos crianças. Uma terra universal, parte de todos nós. Apesar das particularidades, todos vivemos durante um tempo nessa terra ilhada, onde as “pancadas são abafadas” e tudo segue uma narrativa de sensações muitas vezes entorpecidas de novidade.

Pág. 301 – “…mas havia uma outra magia bem mais profunda, ligada a tudo que existia, e o dever de um feiticeiro de verdade era manter o equilíbrio entre todas elas.”

Embora tenham sido criados de modo bastante conservador, os dois meninos tinham uma vida ativa, externa e saudável. Desde pequeno Karl Ove sai sozinho de casa para encontrar colegas e presta atenção aos caminhos, às plantas, à natureza de modo geral. O inverno não se mostra problemático em nenhuma circunstância, todo aquele gelo faz parte da vida norueguesa. Eles viviam na ilha Tromøy, que dá acesso a um pequeno arquipélago ao sul da Noruega, ou região de Arendal, Sørlandet, a cerca de 260km da capital Oslo. Muitas coisas acontecem na cidade de Kristiansand, também de Bergen, que é mais distante, e até da cidade dos avós maternos, que fica logo após, chamada Sørbøvåg, para onde Karl Ove e a família viajam de carro em determinada ocasião. Eu, particularmente, adoro essa paisagem. Já faz um tempo que a Noruega se tornou uma opção nos destinos de férias, e o culpado disso é Karl Ove.

Região de Tromøy, onde vivia Karl Ove

Inverno na região de Tromøy, onde Karl Ove viveu durante a infância

E o livro também é repleto de escatologia, o que sempre achei divertido na infância. Nisso, Knausgård não economizou. Não tem como não rir quando ele conta que os meninos cagavam na frente uns dos outros por pura diversão e curiosidade e que gargalharam até não poder mais quando certa vez encontraram uma cueca de adulto toda cagada no meio do mato. Mas eles também se metiam em confusão, como a maioria dos meninos que brincam na rua. Algumas situações perigosíssimas, como quando jogaram pedras enormes de cima de uma montanha para acertar nos carros que passavam na rodovia abaixo. Ou quando quiseram tocar fogo em várias partes da vegetação de uma pequena ilha. Aliás, é bastante curioso, especialmente para nós brasileiros, ler sobre a infância em um dos países com as melhores taxas de IDH (índice de desenvolvimento humano). Não há preocupação com crianças de sete anos passeando entre florestas e montanhas desabitadas, chegando até os limites da cidade para explorar um lixão ou dando um mergulho no mar, sem qualquer vigilância. Sem falar na educação formal, no tipo do colégio, professores, responsabilidades.

Pág. 68 – …e o principal objetivo de tudo que procurávamos ou encontrávamos era que fosse secreto, e que fosse nosso.

E claro que não podemos deixar de comentar sobre as profundas emoções do primeiro amor, logo aos sete anos, trazendo toda a eletricidade de meramente pronunciar o nome de Anne Lisbet, a menina mais linda da classe. É incrível acompanhar essa narrativa, porque ela tem algo de ingênuo, mas ao mesmo tempo, o tempo todo, sabemos que é um Karl Ove já maduro que nos conta sobre o cheiro nos cabelos de uma garota. É confuso porque é íntimo e distante rever memórias desse tipo de sentimento, ainda mais quando de tão novo. Depois ele passa a “namorar” outras meninas, inclusive outra garota bastante admirada, já que tinha os seios formados, chamada Kajsa. Ela se tornou uma rápida obsessão que levou Karl Ove e sua falta de jeito a colocarem tudo a perder. Karl Ove foi abandonado por ela apenas alguns dias depois de iniciarem o namoro.

Pág. 173 – “…porque em mim havia surgido um novo céu”

Em vários momentos Karl Ove descreve o jeito de ser dos avós paternos, em especial o da avó, que acompanhamos tão sofrida e detalhadamente no primeiro volume, A Morte do Pai, e é interessante como a repetição de certas descrições nos ajuda a nos reencontrarmos com o personagem de anos depois, e lembrar, como o menino, da avó de anos antes, quando ainda ativa, fora sua companheira de emoções. Fora ela quem o levara pela primeira vez a um estádio, para ver o jogo do lado de fora, só os dois, enquanto os outros tinham ido antes, sem eles. É emocionante.

Pág. 172 – “…ela ria muito dessas coisas, às vezes até que as lágrimas escorressem pelo rosto…”

Um piquenique em família em Sørbøvåg, Noruega, no final de 1970 com seu irmão, tio e avós, Karl Ove Knausgård permanece sentado, posando para a câmera. (Foto: Cortesia de Karl Ove ao NYT)

Um piquenique em Sørbøvåg, Noruega, final de 1970, com seu irmão, tio e avós maternos, Karl Ove Knausgård permanece sentado, olhando para a câmera. (Foto: cortesia do autor a Revista do NYT.com)

Há também uma grande coincidência em relação ao nome dos amigos de Karl Ove. Seja na infância como também na vida adulta, seus melhores amigos se chamam Geir. Na infância, não se trata de uma amizade sólida, consciente. Tanto é que Karl Ove está sempre com meninos diferentes, pequenos grupos, e principalmente tem a vantagem de conhecer mais colegas por ser jogador de um time, curiosamente chamado Trauma. Mas apesar dos namoricos e amizades, seus anos de criança e pré-adolescente não foram marcados pela popularidade. Além de passar muito tempo em casa, onde não podia receber ninguém e vivia fechado no quarto, Karl Ove ainda alimentava na escola uma reputação nada popular. O início de sua adolescência foi cingido por zombarias que questionavam sua masculinidade de modo bastante ostensivo. O apelido “femi” o perseguiu pelas bocas de todos os alunos e até colegas. Ele parecia fadado àquela condição.

Pág. 39 – “As profundezas estavam na minha cabeça, e também no meu peito.”

Repetidas vezes o autor compartilha conosco que em quase todas as situações de medo, frustração, raiva etc., ele começava a chorar. Ele foi um menino chorão, como se diz, e simplesmente não conseguia evitar ou esconder esse fato que lhe causava tanta vergonha, até mesmo dentro de casa. Mas para combater seu sofrimento, Karl Ove tinha a literatura. Já bem jovem ele começa a ler tudo o que lhe aparece e a leitura se torna muito mais que uma companheira, um hábito, um lugar onde ele habita e gostar de estar. Eu senti muita falta dos insights literários que o autor, já adulto, nos traz no segundo volume da série, mas entendo que nessa fase infantil, a literatura ainda estivesse se desacortinando para ele, e seria impossível tecer muitos comentários a respeito.

Pág. 201 – “…queria que as pessoas que me vissem percebessem o quanto eu estava triste.”

Neste terceiro volume a questão da auto-ficção volta a ser mais palpável. Surgem questionamentos quanto à precisão da memória do autor, especialmente quando chegamos ao detalhamento de situações muito corriqueiras que ele descreve em minúcia. A profissão dos pais de amiguinhos, as cores e marcas das roupas, a vegetação das florestas em determinados dias e horários e até detalhes importantes das falas de todos. O compromisso com a verdade, na literatura e produção textual, vem com a experiência. Os jovens são inconsequentes e imprudentes porque desconhecem os melhores procedimentos, que só são sabidos com a prática, no passar dos anos. Recontar sua história, reconstruir as lembranças de um tempo perdido, não é tarefa simples, requer muito mais que memória, mais que lirismo e edição. Esta não é uma história contada por um narrador despretensioso, afinal, todas as suas linhas são extremamente planejadas, rebocadas de uma memória cujo foco não é a verdade literal em si, mas a precisão emocional. Pode estar aí o grande trunfo da literatura de Karl Ove Knausgård: revisitar o banal, planejar o revisto, editá-lo e eternizá-lo de modo tão particular, tão interessante a qualquer um porque é próprio de todos.

Pág. 14/15 – “A exigência da verdade nunca é o fator que determina se a lembrança vai reproduzir um acontecimento da maneira correta ou não.”

Não preciso nem dizer que intercalar os tempos de narração torna toda a história ainda melhor. Essa tática já está absolutamente passada, o cinema usou todas as possibilidades de vai-e-volta em tudo quanto foi coisa. Mas Knausgård consegue, em pleno 2016, num mundo ávido por histórias que tratem de outro tipo de herói, se consagrar com o cotidiano de um homem-menino branco, europeu, de um país de primeiro mundo, que sofre questões clássicas de gênero, de auto-afirmação, de fé… Enfim, questões humanas, comuns a todos, mas ainda assim somente traduzíveis aos escritores, aos bons como ele. Por isso sua relevância.

Karl Ove Knausgård em um dia de feriado nacional

Karl Ove Knausgård em um dia de feriado nacional