TEXTO in: Hélia Correia, FASCINAÇÃO, Lisboa, Relógio de Água, 2004

A Lenda da Dama Pé-de-Cabra é uma conhecida lenda de Portugal. Foi compilada por Alexandre Herculano no livro Lendas e Narrativas. Existe ainda uma outra versão, escrita em inglês pelo Visconde de Figanière no seu poema em cinco cantos Elva: a story of the dark ages (Londres, 1878).


Luas medonhas.

Dona Sol, que amava mais o irmão do que o marido, nem queria ouvir as vozes que se levantavam. Deveria dormir, a populaça, devia descansar, a criadagem. Tudo o que era pertença do Senhor, almas cristãs e animais diurnos, se retirava ao retirar-se a claridade. Tudo tratava de fechar os olhos, deixar caminho às criações da noite, que iam bater nas tábuas dos portais com a ondulação de um mar de breu.

Mas, na excepção daquele entardecer, em que enormes luzeiros esvoaçavam sobre os montes impuros do sudoeste, um terror, uma espécie de alegria que levava a uivar e a erguer as saias, mudava a discrição dos habitantes.

Bem tentaram dizer os mais prudentes que era festa dos mouros, os vencidos, os expulsos do burgo, os que veriam cair de podres suas próprias mãos nos trabalhos de enxada contra a neve. Uma festa de mouros acordaria nos aldeões de Deus um coração saudoso de assassínios colectivos. O tinido das armas nos celeiros, mais que o dos sinos, encheria os ares. Os homens soltariam das gargantas roncos de alívio, mais voluptuosos do que os roncos de amor, ao exibi-las, limpas, e amolgadas de outras guerras. E atirar-se-iam para a encosta, antecipadamente perdoados, sob a salivação dos frades bentos que tropeçavam para os acompanhar.

As luas elevavam-se no céu, vermelhas, primeiro duas, depois quatro, semelhantes a olhos de alcateia. É certo que a mourama o venerava, esse crescente que trazia nas bandeiras, cornos de besta, língua de serpente. Mas não tinha maneira de pregar tantos astros no céu e, em consciência, ninguém os acusava de tal feito. Assim, a energia da matança circulava entre as casas, sem objecto. O medo de que o mundo se acabasse, de que as campas se abrissem revelando as últimas misérias, podridões esperançadas em Deus que as limparia, tomava os corpos como um vinho novo.

Dona Sol levantou um pouco a saia, mas a luz que caía do tocheiro não tinha força para a esclarecer. Curvou-se até poder tocar os pés que, apesar do inverno, estavam nus. Afagou os dez dedos, um a um, como se já tivesse envelhecido e o enregelamento lhe doesse. Suspirou, encostando-se à parede, cuja rugosidade, tão real, tão dura para a carne, a fez tremer.

Não era, pois, ainda, a sua mãe, a Dama Pé-de-Cabra, quem mandava, com essas luas, a informação de que Sol também estava transformada em livre criatura dos infernos.

Evocava essa mãe, bela e cantante, que enfeitiçara D. Diogo Lopes e o levara a pedi-la em casamento, ao que ela logo ali tinha acedido, na condição de ele nunca se benzer.

Ela, esquecida de seus pés fendidos, ele, esquecido do sinal da Cruz, viveram anos de harmonia tão capaz que lhes nasceram filhos, como nascem aos matrimónios para que Deus olhou. Inigo e Sol, tais eram os seus nomes, não se ocultavam nas cozinhas do solar e mostravam o rosto aos visitantes. Tinham da mãe aquela espécie de fulgor que torna os ruivos alvo de fascínio e, ao mesmo tempo, de desconfiança. Das suas cores que, no entanto, pertenciam a um tipo humano que existia em toda a parte, é que emanava, numa refracção, o sinal de que havia dentro em casa unia falta, a desgraça de infiéis. Comentavam os que iam e os que vinham, sentados junto às fontes do caminho, benzendo-se, eles, e nunca suspeitando que D. Diogo Lopes se não benzia.

De certo modo, a história do desastre, quando correu, aliviou as almas, dando um sentido àquilo que os intrigava. Nos casebres, nos adros das ermidas, junto das vendedeiras de aguardente que chegavam bem perto da cidade, as vozes conquistavam os ouvidos da mais difícil das assembleias, relatando como a mulher do grande caçador se tinha transformado num demónio. Em hora má havia o cavaleiro, enfurecido mais do que devia pela morte do cão seu favorito às fauces da cadela que era grande favorita da esposa, e até então vivera como bicho mole, em hora má, diziam, qualquer coisa de imprudente fizera que mudara tão gentil dama em negra, e cabeluda, e esticada figura que subia, e ia deitando as garras para os filhos.

Que fora aquilo? Contavam uns criados que o ouviram jurar, contavam outros que o viram persignar-se, um exagero frente a um caso entre animais sem culpa, ainda que tão potentes carniceiros. Era como se a mão se desprendesse e se pusesse a desenhar a cruz num furor próprio e quase independente, aproveitando a distracção do dono.

Uivou sua mulher o mais horrendo dos uivos que um cristão testemunhou. E, como se puxada para o alto, direcção que levou muitos ouvintes a encolherem ombros, duvidosos, pois se sabia que os demónios não se elevam, subiu a dama, agora enegrecida, abrindo-se o telhado ao seu tamanho. Mas ai: ou fosse o coração de mãe, que em plena treva anseia pelas crias, ou fosse ordem do amo Belzebu, que cobiçava os corpos inocentes para qualquer serviço inconfessável, lançou ela para os filhos suas mãos que nada tinham já de feminil, antes pareciam pinças de tarântula. O aterrado pai deitou-se ao filho com toda a robustez do seu abraço e assim o reteve contra o chão. Não irei eu, discreta narradora, comentar esta escolha do fidalgo, feita em arrancos de aflição tamanha. Talvez se achasse próximo de Inigo e, caçador experiente com era, medisse as boas probabilidades. Os relatores do caso não descrevem convenientemente a posição das quatro personagens envolvidas. Do mais fiável, que a passou à escrita, temos informação de que já estava Dona Sol afastada do soalho quando Diogo Lopes reagiu e impediu o rapto do filho. Porém, quem sabe se escolhendo perder um, sendo ágil a escolher nas montarias, não lhe pesou na decisão a diferença entre manter na casa o seu varão e o somenos proveito da donzela. O facto é que ficou lnigo Guerra e vemos como ascende Dona Sol, tão estupefacta, tão paralisada que a saia lhe rodava, feita pêndulo, como à gente acabada de enforcar. Nada dizia, nem um choro ouviram. O seu cabelo de criança, solto, brilhava rubramente contra a mãe. E o seu olhar caía, desolado, no olhar desolado do irmão.

De lnigo Guerra muita história é conhecida. Tudo se disse sobre a ferozia que toda a vida o empurrou para as matas, rosnando mais que os próprios bichos rosnadores. Achava, no cravar da sua faca, no despejar do sangue dos pescoços, fosse de gamos ou de caçadores furtivos, outro prazer que não achou seu pai. Porque seu pai amava a Dama Pé-de-Cabra, e todos sabem que não há disputa maior do que a do leito com a montada. Mas a lnigo, em sua inteira vida jamais o viram a amar mulher.

Era homem soturno e mesmo aquela claridade de ruivo no seu corpo dissuadia as aproximações como se de uma sombra se tratasse. Episódios de aberta fantasia, como tê-lo ajudado sua mãe a libertar o pai das prisões mouras, circulam, sem emenda, a seu respeito. O que até hoje permanece omisso, ainda que o soubesse eu, não vos diria.

E que vida levava Dona Sol, arrancada a seus cães e a seus brinquedos, roubada à companhia do irmão que tudo para ela tinha sido? Pendurada nas garras dessa mãe, cortou os ares três dias e três noites, vendo, do alto, os vales e o casario como jamais algum mortal verá, excepto se o demo inventar obra que o consiga.

De que modo cresceu a rapariga, não fica ao nosso alcance imaginar. Se foi na terra negra dos infernos, se na cinza das zonas espectrais, ou num éden pagão que o Criador se tivesse esquecido de esmagar, nunca ela a cristão o revelou. Decerto se passou entre mulheres a sua aprendizagem, pois sabia pentear-se e bordar na perfeição.

Onde quer que vivesse, definhava. E a pobre mãe, estimada entre os danados pelos grandes poderes de que dispunha, nada podia para estancar as lágrimas que brilhavam nos olhos da menina. Nem festas, nem bailedos, nem mil sóis armando uma grinalda em plena noite; nem as fadas do bosque ou o geral da caprina irmandade em alvoroço conseguiam levar-lhe o riso à face. Pois, apesar de ruiva, Dona Sol conhecia o tormento dos morenos, da gente das Hespanhas, e amava.

Amava Inigo, seu irmão de sangue. No turbilhão de dança e gargalhada em que consistiriam os seus dias, a julgar pelos sabates que vemos em livros no entanto mais tardios, erguia ela, como se ergue um espelho, a imagem parada do rapaz preso ao pai, cujo impulso os derrubara. Ele olhava-a, entre os restos de comida e os cadáveres dos cães, e ela subia. E, a ligá-los, esse fio do olhar, no seu poder elástico, durando, alcançando distâncias sem medida.

Crescia Sol, sofrendo as leis do corpo humano, pois nada nele se reconhecia da infernal composição da mãe. Os seus pezinhos róseos, com dez dedos, chamavam de tal modo a atenção que lhe inspiravam uma espécie de pudor.

Estava entre estranhos. Curiosamente, o que lhe dava a força de sentir-se uma cristã roubada à sua igreja, refiro-me à saudade do irmão, era a única coisa que a tornava um tanto diabólica também, pelo bruto apetite do incesto. Nisto já se parecia com a mãe que, para gozar da carne de D. Diogo, se comportou, em todo o tempo de casada, como a mais baptizada das esposas. Parta lá das leis de um mundo e de outro mundo, ficava ainda o seu amor materno.

Sentindo Sol suspensa no vazio, ela sofria um sofrimento de aldeã que olha de lado, e suspirando, para a filha a quem algum namoramento ensimesmou. Sendo, porém, a Dama Pé-de-Cabra, um pouco mais podia aquela mãe. E avistou, no fim dos olhos da donzela, o rosto aflito de seu próprio filho, o que, há que confessá-lo, a envaideceu. Pois não só se tratava de um amor em tudo adverso às convenções da cristandade como se estava ela amando a ela mesma, nas duas formações de si paridas. E resolveu que os dois se encontrariam para que os seus ventres desfrutassem do encontro. Devolveria Sol ao dia e à terra.

-Vai, então -disse. E atirou-a para o castelo onde fora feliz com D. Diogo e onde agora mandava Inigo, o filho.

Porém, um outro braço, o do Senhor, desviava o caminho à rapariga. Ela aparecia vinte léguas mais a sul, onde andavam os últimos cristãos no seu confronto com o inimigo. Eram lugares dourados, pobres de água, em que mais não havia que coelhos e burros bravos para se caçar. Sobre uma ribanceira de arenito, junto de definhados aloendros, é que pousava Dona Solos pés. E, tendo soerguido a sua lira, cantava a mais dorida das canções.

Bem tinha ela sentido o soco irado que lhe impedira a direcção de casa e a arremessara para ali. A solidão cercava-a como um vidro. Chamava pela mãe e ela vinha, mais negra, se possível, de furor. Duas, três vezes empurrou a filha com o seu bafo, que era o bafo de um dragão, para o leito de D. Inigo Guerra. Duas, três vezes Deus se intrometeu e com um bofetão a afastou.

Dona Sol encontrava-se de novo na paisagem macia e ensonada onde chispava às vezes uma lâmina ou o que a ilusão por tal tomava. Sua sina obrigava a que cantasse. Mouros e cristãos ouviam-na cantar e uns e outros tapavam os ouvidos, temerosos dos cantos de tão amável canto.

Passou ali um dia Afonso Pena, lidador fatigado de lidar. Ia um pouco afastado dos criados, sonhador, contra o que era seu costume. O pó colado ao sangue e ao suor dava-lhe a aparência de um leproso. Vinha ele de matar dez inocentes, que fora o que encontrara no caminho.

Eram crianças e mulheres que lhe tentavam fugir, gritando, num perigoso alerta. Se bem que não passassem de infiéis com cuja execução Deus exultava, tinham, nesse momento de morrer, olhos tão tristes que ele se comoveu e sentiu o seu braço fraquejar. Depois matara obedientemente.

Por momentos pensou que essa tristeza, tão densa e vergonhosa, de matar, era o que lhe soava nos ouvidos como uma bela voz de cantadeira. Depois olhou para cima e avistou-a, tão branca e ruiva que isso deveria ter servido de aviso, e não serviu.

Como D. Diogo se casara com a Dama, assim Afonso se casou com Dona Sol. Mas ela não lhe impunha condições. Faziam limpa vida de cristãos, curvando as costas à passagem dos priores, deitando, em penitência, todo o corpo sobre as lajes dos túmulos das freiras. Dona Sol tinha apenas um defeito que era gostar de cavalgar sozinha, deixando para trás os escudeiros, incapazes de tanta velocidade. Viam-na a afastar-se e duvidavam dos próprios olhos, já que a castelã, na distância, parecia esvoaçar, como se levantada pelo ar quente. Ela voltava às vezes muito tarde, suja do lodo das paragens de água, e a lealdade deles enraivecia-a. «Como regressaríamos sem vós?», perguntavam, de lágrimas nos olhos. Eram ou muito novos ou já velhos, não conheciam grandes atitudes. Levavam a senhora a D. Afonso e ele sacudia-os logo para as cozinhas. Ela tinha um deitar-se turbulento e o marido deixava-a com as aias. Ia sofrer de amor para o seu quarto. Nunca veio a saber que Dona Sol procurava o irmão e não o achava, porque ela não falava do assunto. Tinha a boca cozida pela luxúria e nada de fraterno a conduzia.

Inigo Guerra não vivia longe e era famoso entre mourama e cristandade. Revelava um perfil aterrador a todo o que com ele se cruzasse. Caçava as bestas e os infiéis com o mesmo silêncio comprazido, e até mesmo os padres censuravam um serviço de Deus tão solitário. Porém, não dava escândalo e por isso não servia para tema de conversa. Nem despertava curiosidade, apesar de viver semioculto e entregue a expedições muito intrigantes. Não se pode afirmar que o receavam, já que o receio é um motor da língua e a seu respeito nada se dizia.

Dona Sol demorava-se entre os servos, mas fala alguma lhe levava informações. E ela não se atrevia a perguntar, temendo que a pergunta revelasse a quantidade de pecado que continha.

Ninguém lhe conhecia a ela irmão, nem pais, nem bens, nem recomendações. Disse-se presa pelos mouros desde criança e escapada, sozinha, no momento em que grande matança acontecera e as mulheres tinham descuidado a guarda. Era caso vulgar. E D. Afonso dispensou dote e aliança de famílias, pensando que levava nessa ruiva todo o ouro do mundo para o seu leito.

Deus impedia o encontro dos irmãos que, a suceder, os amantizaria.

Estavam às vezes próximos, tão próximos nas suas correrias pelos bosques que os seus cavalos se empinavam e riscavam com as patas da frente no vazio. E digo bem: vazio. Pois o Senhor mandava a sua legião dos anjos rarefazer os ares com as suas asas, tomando o sítio terra de ninguém. Às vezes, a mais grossa escuridão caía entre eles e, no entanto, era meio-dia. Muito à distância, a Dama Pé-de-Cabra esticava os negros beiços e uivava. Porém, não conseguia competir.

-Só te acharás junta com ele, filha -disse ela a Sol durante um dos encontros que tinham, altas horas, nos terraços -, se te mudares em Dama Pé-de-Cabra. O que nós, as danadas, praticamos, não é nada da conta daquele Outro.

-E que esperais para me mudar, mãezinha? -perguntou Sol. Olhava os pés descalços cujas dez unhas rebrilhavam ao luar. A mãe usava sempre uns escarpins com um ligeiro salto cor de vinho. Tomava muito belas aparências para as suas conversas com a filha. Essa mulher com olhos de safira e com pele de alabastro é que uma vez prendera a alma de Diogo Lopes.

..-São precisos empenhos que nem sonhas -respondeu ela, e logo se sumiu. Eram tempos de verão e as feiticeiras folgavam sem rebuço pelos céus, com os seus pé fendidos voltejando, pontapeando as luas amarelas. Dona Sol regressou à sua câmara, onde as aias dormiam em tapetes. Elas, espreitando, viam-na tremer, ajoelhada, como se um perigo lhe ameaçasse a alma.

Afonso já a temia então de tal maneira que não a procurava. Sem que nada de facto acontecesse, os viajantes passavam à distância, evitando as paragens do castelo. Uma mulher cantava nas muralhas. Diziam que ela olhava para os pés como se já tivesse endoidecido.