Os ritos e crenças relacionados aos natimortos variam amplamente entre diferentes culturas e religiões em todo o mundo. O cultural e o individual não se dissociam, escreveu Freud em Psicologia das Massas e análise do eu (1922). Nisto me baseio para explorar lendas, mitos, crenças, superstições e ritos que influenciam pensamentos no tocante ao fenômeno dos natimortos. O lema é: conhecer de tudo, para em nada acreditar (ou melhor me defender!). A compreensão das lendas e mitos ajuda no contorno e no fluir das estruturas dos pré-conceitos e moralismos. Não existe discussão fechada a respeito da cultura, que é um sistema simbólico necessário à sobrevivência, é dinâmico e condiciona os modos de vida. O choque semântico tem efeito desorganizador, ainda que promova resgate de referências.

Há milênios os rituais ajudam os enlutados a encarar e processar a morte, inclusive a contra natura, que ainda é um tabu. Por isso, diferentes tempos e culturas (cristã, egípcia, celta, romana, indígena, africana e outras) acerca do fenômeno. Esses são apenas alguns exemplos, mas existem muitas outras crenças e rituais relacionados aos natimortos em diferentes culturas e religiões em todo o mundo. A questão dos natimortos e dos rituais relacionados a eles pode ser complexa e multifacetada, pois envolve aspectos culturais, religiosos e pessoais, sociais, públicos etc. Tentei fornecer uma visão geral, mas é importante lembrar que essa lista não é exaustiva e que existem muitas variações e nuances dentro de cada tradição.

Diversas

  • Em algumas tradições cristãs, os natimortos são considerados anjos especiais que nunca tiveram a chance de pecar.
  • Na cultura indígena americana, os natimortos são considerados seres espirituais protetores das crianças vivas.
  • Em algumas tradições islâmicas, os natimortos são considerados como sendo especialmente próximos a Deus e são honrados durante o mês sagrado do Ramadã.
  • Na cultura hindu, os natimortos são considerados como almas que precisam ser liberadas através de rituais específicos.
  • Na cultura japonesa, os natimortos são honrados durante o festival de O-Bon, que acontece anualmente, durante o qual as almas dos falecidos são acreditadas retornarem para o mundo dos vivos.
  • Na cultura chinesa, os natimortos são honrados durante o Festival da Lua, que acontece anualmente. Neste festival, as pessoas acendem velas e colocam comida e oferendas para os antepassados e os natimortos, acreditando que isso os ajudará a encontrar paz e conforto no mundo espiritual.
  • Na cultura budista, os natimortos são honrados com cerimônias especiais e oferendas, e é acreditado que os rituais de oração e meditação podem ajudar as almas dos natimortos a alcançar a iluminação espiritual.
  • No judaísmo, os natimortos são lembrados e honrados durante o Yom Kippur, que é um dos dias sagrados mais importantes do ano. As pessoas jejuam e oram pedindo perdão pelos seus pecados e orando pelas almas dos seus entes falecidos, incluindo os natimortos.
  • No esoterismo, os natimortos são honrados em cerimônias, como a Naming Ceremony, para dar nome, e é acreditado que isso ajuda a alma do bebê a encontrar paz no mundo espiritual.

ataúde egípcio para feto

Cultura Egípcia

No período conhecido como Reino Médio (1640 a.C.), entre os egípcios antigos, o nascimento era visto como um momento crítico. Acreditava-se que seres malignos poderiam se aproximar, resultando na morte da mãe, do bebê ou ambos. Alguns artefatos associados a tais etapas do desenvolvimento, especialmente de natureza mágica, foram recuperados tanto no contexto doméstico-funerário e podem ajudar a entender como os egípcios procuravam  proteção. A preocupação em proteger o local do nascimento, a parturiente e a criança torna-se compreensível quando pensamos nos números da mortalidade infantil. Era grande a porcentagem de crianças e mães que morriam durante ou por complicações causadas pelo parto, e crianças que faleciam antes de completar um ano de idade. Na cidade de Lahun, por exemplo, foram encontradas caixas de madeira, originalmente utilizadas para outros fins, que serviram como ataúdes para fetos e bebês. Nestas caixas eram inumados um ou mais corpos, que eram identificados apenas por escaravelhos ou selos-cilindro. Estas caixas eram enterradas abaixo do piso das residências, possivelmente por algum familiar ou alguém próximo e, segundo a egiptóloga Geraldine Pinch, isso era feito na esperança de que o espírito da criança pudesse voltar para o corpo da mãe. A ideia de um espírito, porém, é equivocada, já que para os antigos egípcios não existia a dualidade corpo-alma. A parte que voltaria ao corpo da mãe possivelmente seria o ba, representado na forma de um pássaro com cabeça humana, e que simboliza a personalidade do indivíduo. Ao nascer, então, a pessoa receberia o seu ba, que entraria pela boca. No caso de uma morte prematura, esta parte retornaria mais tarde para a sua mesma origem que, no caso de aceitarmos tal hipótese, seria o corpo de um novo indivíduo gerado pela mesma mãe. Nos enterros as crianças são equipadas apenas com colares, amuletos e escaravelhos ou selos-cilindro, que datam a sua morte. Não havia preocupação em mumificar os corpos, que eram depositados nas caixas, com certo cuidado, mas sem a preparação de se proceder a ritos que seriam necessários para a sobrevivência do indivíduo na vida post-mortem. A curiosa controvérsia é um pequeno caixão de cedro, encontrado em Giza em 1907, com os restos mumificados de um bebê de apenas 18 semanas de gestação. A múmia mais jovem encontrada até hoje na história do Egito antigo. Esta descoberta, feita pela equipe do Museu Fitzwilliam, em Cambridge, não é a primeira (na tumba de Tutancâmon já haviam sido encontradas duas múmias de bebês de 25 e 37 semanas de gestação), mas confirma a importância dos rituais de enterro, mesmo para as vidas perdidas ainda no útero. O pequeno caixão, datado entre os séculos VI e V a.C., foi esculpido minuciosamente e decorado com cuidado especial, o que chamou a atenção dos curadores, que, ao abrirem, encontraram um corpo minúsculo cuidadosamente amarrado com ataduras, unido com resina. Um exame de raio-X revelou que as ataduras contêm um pequeno esqueleto inalterado.


Cultura Romana

O fato de não haver identificação nos corpos das crianças enterradas leva a uma questão: por que os bebês eram enterrados em locais separados das outras crianças e dos adultos? Para os especialistas pode ser por eles ainda “não terem atingido o status de pessoa” perante a sociedade. Este momento variava de uma cultura para outra: em Roma isto se dava quando a criança atingia 40 dias. Já em outras regiões a criança só era considerada membro  da comunidade quando começava a falar. Edgar Morin, em  O homem e a morte (1997) explica que “nas sociedades arcaicas, a morte da criança, na qual se destroem, no entanto, todas as promessas de vida, suscita uma reação funerária muito fraca”. Há, então, uma relação direta entre o tempo de vida do indivíduo em sociedade e a importância dos seus ritos funerários. Por essa razão os bebês seriam inumados com um enxoval funerário exíguo ou inexistente.

Fontes:

  • Do nascimento aos primeiros anos de vida: um olhar sobre a infância no Egito do Reino Médio, Liliane Cristina Coelho – link
  • A múmia mais jovem do Egito: um bebê de 18 semanas de gestaçãolink

Cultura Celta

Na antiga cultura Celta, os funerais tinham a função de fazer a passagem da alma do morto para o Outro Mundo, onde ele viveria uma vida em muito similar à anterior, excluindo apenas os aspectos negativos e essencialmente mantendo a estrutura social na qual ele se inseria quando vivo, um chefe presumiria continuar chefe depois de morto, um camponês poderia presumir continuar camponês. Gerald A. Wait em seu artigo Burial and the Otherworld (1995: 489-511) parte da coletânea de Miranda Green intitulada The Celtic World (1995), analisa diversas formas de rito funerário das sociedades celtas, de diversas localizações espaciais e temporais e as divide da seguinte forma: tradições céltico-britânicas e tradições do noroeste europeu. Funerais anormais são usualmente associados a dois grupos: primeiro àqueles que receberam um tipo de morte considerada anormal, indigna ou inadequada (assassinados, atingidos por raios, suicidas, natimortos, sacrificados, e mortes consideradas tabus). São ainda sepultados de forma anormal aqueles que possuíram um modo de vida considerado proscrito, caracterizado como um marginalizado, por atos criminais ou por participar de um subgrupo social específico ou marginalizado (feiticeiros, bruxos, hereges etc).


Wasahpôga – cupinzeiro

Cultura Indígena | Pater-Suruí

A tribo indígena Pater-Suruí que ocupa a região de Rondônia e Mato Grosso, no Brasil, tinha (ou tem) uma lenda para o fenômeno dos natimortos. Uma mulher da tribo fora injustamente atingida na cabeça e, sem receber atenção ou ajuda dos demais, passou a viver como um cupinzeiro, chamado Wasahpôga. Por vingança, ela faz mal ao povo da tribo. Mulheres grávidas não devem passar perto dos cupinzeiros sob risco do bebê nascer morto. A Wasahpôga é, portanto, um tipo de inimigo cujo enfrentamento só pode se dar através de um guerreiro protegido pelos espíritos, um pajé, no caso de aceitarmos tal hipótese. No documentário sobre a tribo, o ex-pajé orienta uma criança da tribo a não tocar no cupinzeiro, já que a comunidade não estava sob proteção espiritual. Ao final, ele próprio destrói o cupinzeiro.

Fontes:

  • documentário Ex-Pajé (2018), dirigido por Luiz Bolognesi
  • Um estudo psicanalítico sobre perdas mitológicas e etnocídio a partir do documentário “Ex-pajé” – Dorivaldo Pantoja Borges Junior; Paulo Roberto Ceccarelli – Estud. psicanal. no.53 Belo Horizonte jan./jun. 2020

Cura das crianças Àbíkú, 1973 – Prince Twins Seven-Seven

Cultura Yorùbá

Desde tempos imemoriais, na cultura Yorùbá e em outras na Nigéria e região existem os Àbíkú, crianças que terão vida curta. A lenda, difundida na religião de matriz afro-brasileira do candomblé, diz que os Àbíkú constituem uma sociedade de espíritos que vêm à Terra, encarnam, mas vivem por um curto período. Antes de encarnar o espírito se compromete com a comunidade à qual pertence, de voltar o mais rápido possível, estabelecendo até data e hora. Existem trabalhos (ebós) para quebrar esse pacto, permitindo que o espírito viva por mais tempo. Acredita-se que quando nasce um Àbíkú a família tem dívidas espirituais a pagar. A vinda de uma criança que necessitará de muitos cuidados espirituais para evitar sua morte — o que sempre é um sofrimento para os pais. Assim como o nascimento de gêmeos é uma grande honra e alegria para a família, o nascimento de um Àbíkú é sinal de preocupação. Esses espíritos pertencem ao ebê abicu e não a um ebê da terra. Por isso sua forte ligação com o Orum (mundo espiritual) e sua necessidade de sempre tentar voltar.

No Orum vive um grupo de crianças Emere ou Elegbe que constitui o Egbe Orún Àbíkú, ou seja, sociedade das crianças que nascem para morrer. Contam os mitos que a primeira vez que vieram para a Terra foi em Awaiye e constituíam um grupo de 280, trazidos por Alawaiye, chefe no Orum. Os Àbíkú tem influência na família, são poderosos, manipuladores, videntes, espíritos envelhecidos, têm atitudes de adulto etc. Na encruzilhada que une o Orum ao Aiyé, ikorita meta, todos pararam e vários pactos foram feitos, definindo o momento particular do retorno de cada um ao Orún. Alguns voltariam quando vissem pela primeira vez o rosto da mãe, outros quando casassem, um terceiro grupo voltaria quando completassem determinado tempo de vida, um quarto grupo voltaria quando tivessem o primeiro filho, e assim por diante. E o carinho dos pais, o amor que recebessem ou os presentes não seriam capazes de retê-los. Alguns assumiram o compromisso de que nem nasceriam.

Homens e mulheres podem carregar o karma de perderem os filhos. Mulheres que perdem os filhos até os nove anos também são consideradas Àbíkú, assim como as que sofrem abortos espontâneos ou morrem ao dar à luz. A ação do Abikú ocorre por determinação do destino da mãe, ou por força de magia, ou por condições acidentais. Há a crença de que uma mulher grávida, ao passar por determinados locais, se não estiver devidamente protegida, pode ver-se sujeita à gravidez de um Àbíkú. A ocorrência de filhos Abikús numa mãe invariavelmente repete um histórico familiar. Alguns Odú, ou seja, santos que regem o homem ou a mulher, desde o nascimento, predispõem a ocorrência do espírito elebê se manifestar numa gestação/nascimento de um filho. Assim, temos homens e mulheres regidos pelo Odu Ogundabedê – Ogundá + Obê, que são naturalmente predispostas a reproduzirem filhos Àbíkú e, identificados, quando ainda não são pais, oferendas são realizadas e alimentos são dados a estes espíritos para prevenir a ocorrência da morte do filho.

Fontes:

  • “Ayedungbe: a terra é doce para nela se viver – rito na luta contra a morte de Àbíkú” – Sikiru Salami e Iyakemi Ribeiro
  • Wole Soyinka (poema Abiku, 1967, e Aké, los años de la niñez)
  • Amos Tutuola (My Life in the Bush of Ghosts)
  • Debo Kotun (Abiku, 1995)
  • John Pepper Clark (poema Abiku, 1967)
  • Toni Morrison (Beloved, 1987)
  • Na cosmogonia igbo, destaque para a novela Tudo se desintegra de Chinua Achebe

 


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Quem faz esta lista?

Julia Medrado (1985–), paulistana, mãe da Patrícia e do Tarcísio, vive em Portugal, é tradutora, publicista e mestre em Literatura e Crítica Literária. Graduada em Letras pela PUC-SP, é também especialista em Gestão de Projetos Digitais pelo SENAC. Presta serviços junto a redatores, revisores e tradutores; em 2010 criou a Tradstar e, desde então, se divide entre projetos, alguns literários e absolutamente pessoais, como este site que leva seu nome.