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K. – Relato de uma busca

Bernardo Kucinski

A irmã do autor Bernardo Kucinski, professora assistente de química na Universidade de São Paulo, em 1974 foi presa pelos militares ao lado do marido e desaparece sem deixar rastros. O pai, judeu imigrante que na juventude também fora preso por suas atividades políticas, inicia então uma busca incansável pela filha e depara com a muralha de silêncio em torno do desaparecimento dos presos políticos.

K. narra a história dessa busca, em terceira pessoa, num formato que mistura a estrutura de contos com múltiplas vozes. Trata-se de um “inventário de perdas da perda de uma vida”, numa tentativa de reatamento de relações entre pai e filha, ainda que desaparecida.

“Sobreviver na derrota, isso sim, seria vitória.”

Lançado originalmente em 2011 pela editora Expressão Popular, em 2013 ganhou nova edição pela Cosac Naify, e em 2016, chegou à Companhia das Letras. Ao longo desses anos, K. se firmou como um clássico contemporâneo da literatura brasileira.

Há uma correlação entre o regime militar e o nazismo. No capítulo A queda do ponto temos uma primeira mudança de foco, estamos com o casal no pequeno apartamento em que se escondem, cogitam o suicídio com cianureto para que não tenham que delatar ninguém na tortura. No capítulo O abandono da literatura temos uma obra que trabalha o resgate através da memória e da ficção. Uma obra híbrida, que fala da dor invisível que trespassa o corpo e clama por verdade e justiça.

vocábulos & expressões

(sorvedouro, sumidouro de pessoas)

“pressuroso”  1. Apressado, azafamado, diligente, ativo. 2. Solícito. 3. Impaciente, irrequieto.

“alcaguete”

“diletante”  (italiano dilettante) 1. Amador de uma arte ou de literatura. 2. Que ou quem é entendedor ou apaixonado de uma arte ou a ela se dedica por gosto, especialmente à música. 3. Que ou quem se dedica a algo por prazer e não como modo de ganhar a vida. 4. Que ou quem procura o prazer ou tem uma atitude superficial, sem mostrar maturidade, profundidade ou responsabilidade.

 

A Resistência

Julián Fuks

Este é livro de muitas resistências. Um resgate familiar por meio de uma construção literária minuciosa e precisa. “Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado”, anuncia, logo no início, o narrador deste romance. O leitor se descobre de partida imerso numa memória pessoal que se revela também social e política. Do drama de um país, a Argentina a partir do golpe, desenvolve-se a história de uma família, num retrato denso e importante.

“Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado”

Adotado por um casal de intelectuais que logo iriam buscar o exílio em São Paulo, o menino cresce, ganha irmãos, e as relações familiares se tornam complexas. Cabe então ao irmão mais novo o exame desse passado e, mais importante, a reescritura do próprio enredo familiar. E ali somos levados a conhecer os desdobramentos emocionais da adoção ilegal de seu irmão.

O autor parece nos guiar pra cima e pra baixo, como se não soubesse bem porquê contar ou como se estivesse contando ao vivo, no exato instante em que lemos. Um exemplo está no final do capítulo 23 e início do 24. O que é dito, é também contradito. O eu que narra, anuncia um pacto de ambiguidade com o leitor: vai e não vai contar a história real do irmão; vai e não vai examinar os conflitos da família, vai e não vai discutir no próprio livro o gênero literário a que se está dedicando.

Quando afirma sua obsessão pelas Avós da Praça de Maio — que tanto buscam seus netos desaparecidos nos calabouços da ditadura —, o narrador diz a este irmão que, afinal, ele não está desaparecido, tem ele sua verdadeira e real família.

Idealizado para ser um híbrido autobiográfico, um outro termo discutido bastante é o da “auto-ficção”, Julián Fuks nos diz sobretudo que o romance não morreu. Ele resiste, como resistem os que lutam contra as ditaduras, como os que querem pertencer e não conseguem, como a mãe que não abdicou dos filhos; como este jovem escritor, sempre resistente ao fácil e ao dócil.

O autor quer fazer da literatura mais um discurso possível.

perspectivas narrativas a partir do eu filho, do eu irmão, do eu autor e do eu mesmo.

O título original “Um irmão possível” fica a deixa de quem seria o irmão possível.

A questão da herança do exílio, questões de identidade quase sempre desnecessárias, mas ao mesmo tempo, são quase involuntárias, ao falar da família ele fala dele mesmo.

As memórias do pai, da mãe, nem sempre eram concordantes, então essa margem lhe dá espaço para melhor trabalhar a ficção, a literatura. Inclusive quando ao final ele dá espaço para que os pais critiquem seu livro, que deem voz aos personagens que lhes cabem.

“Eu sei, nós sabemos que é um livro saturado de cuidado, carregado de carinho, eu sei que a duplicidade não se restringe a nós, que o livro é duplo em cada linha.”

na questão da adoção, sempre explícita inclusive as crianças desde cedo, sofreu um processo reversivo, tornando-se um tabu, o irmão não queria mais que se falasse disso.

premência da politica, é natural que a li tenha uma participação mais direta, mais eloquente, requer outro tipo de sensibilidade,

sintomático do descrédito de literatura, especialmente com a ficção.

Você vai voltar pra mim e outros contos

Bernardo Kucinski

O título de falsa sedução vem de uma fala que Bernardo Kucinski ouviu em 2013, em uma sessão da Comissão da Verdade. Você vai voltar pra mim traz 28 contos curtos sobre a ditadura militar e a repressão. Publicado em papel arquivo em 2014 pela Cosac & Naify, em conjunto com o relançamento de seu romance de maior alcance K., e em função da efeméride dos cinquenta anos do golpe militar no Brasil, a obra dá continuidade à temática do autor. O diferencial deste livro é que, diferente de alguns autores que trabalham a temática atualmente e que precisam fazer pesquisa para compreender o período em questão, Kucinski viveu a realidade da época, assim como também foi jornalista, professor e pesquisador da ditadura, possuindo vasta bibliografia ficcional e teórica.

Prêmio Literário Biblioteca Nacional na categoria contos (Prêmio Clarice Lispector) 2014.

“O que me comove é que, quando você pega histórias individuais, é sempre muito chocante“, diz Kucinski.


  1. A beata Vavá – a força da religião e do mistério como única salvação; rompimento da hierarquia da eficiência sistemática e da razão; uso do “ocultismo” para causar efeito
  2. A negra Zuleika – vitimização por racismo e submissão; injustiça.
  3. Terapia de Família – sucessão de traumas, incomunicabilidade, desesperança, descrença, loucura
  4. O jogo de chá – a decadência atual associada a um período de porcelanas do passado; o preconceito com o alcoolismo, com a grosseria de modo geral, a indicar um refinamento não de todo perdido; o aparelho de chá como relíquia de um tempo que não
    volta e nem deve voltar porque não se resolveu.
  5. Sobre a natureza do homem – o vazio quando se descobre que “a luta” fora apenas um subterfúgio de sobrevivência; a filosofia instrumentando o discurso do conto; a informação que chega sem emoção, mas com detalhe, com conclusão.
  6. O velório – a simbologia do encerramento de uma história doída, interminada, desconhecida, de uma ilusão voluntária e coletiva
  7. Joana – o amor como fio condutor de uma esperança desmedida, como motor da loucura
  8. A visita do inspetor-geral – a crença na intervenção, na importância de anos de serviço, influencia, insistência, para descobrir que não se muda certas naturezas
  9. Você vai voltar pra mim – no título de falsa sedução, encontramos também a infantilização, ideia da pressão sem fim, do horror de não ter voz, nem ferimentos suficientes que possam acabar com aquele sofrimento.
  10. A troca – cobrança ideológica na produção artística, inversão das expectativas
  11. Heliodora – outras formas de traição, de loucura, de dissidência
  12. A entrevista – novamente a necessidade de pontuar a morte, de esclarecer os afetos, contabilizar as relações, principalmente as familiares.
  13. Pais e filhos – falsa crença na instituição; tirocínio; o silêncio falando os sentimentos,  “a ignorância é que nos pacifica”(VHM), as permissões e rebeldias, como termômetro do respeito, do limite.
  14. A suspeita – talvez o meu meu conto preferido até o momento porque conseguiu condensar o mistério, o terror, a loucura, o coletivo, e principalmente a questão do estranho trazida para dentro do lado oprimido. Em um simples diálogo entre membros desconhecidos sobre o problema da culpa, culpa-se a época. O caso não é bem explicado, pegamos pelo que ouvimos, e não ouvimos tudo. Não há desenlace. A suspeita continua.
  15. Kadish para um dirigente comunista – novamente a questão da fé é posta em análise, mas o que fica evidente neste conto é a tentativa de “dar sentido”, dando continuidade a uma luta que estruturou toda a vida de Alberto. A necessidade de resistir até contra o desconhecido, de trazer a dúvida, mas como forma de força.
  16. Um homem muito alto – preso dentro do próprio corpo, dentro da condição de destaque que a vida aleatoriamente lhe impôs.
  17. Recordações do Casarão – o conto nos dá uma brecha por onde podemos ver como era a vida dentro das casas da resistência, mas pelo olhar do homem comum, o que vê as pessoas antes de tudo,
  18. Os gaúchos – “alguma coisa está errada”, diz o personagem principal, mas aparentemente tudo está errado na família Saraiva de Carvalho, como se a ordem as coisas estivesse invertida, mexida na macheza das relações
  19. A mãe rezadeira – a reza se renovando a cada estágio, a cada novo inimigo do filho; este conto parece se relacionar a outro
  20. A instalação – o horror de reconhecer a resignificação de um objeto de tortura, de seus traumas… a explicação de como sua família se dividiu, como se desencontrou e perdeu o sentido
  21. O garoto de Liverpool – visão abrandada de fora, a brutalidade do sistema que não era capaz de distinguir ninguém, das aparências e suas consequências, da lição
  22. História de uma gagueira – novamente a repressão política que se reflete na família, no próprio campo rural e gera sequelas, marcas que testemunham esse abuso, esse cerceamento de liberdades ainda na infância, a visão européia do regime, em especial o salazariano, e a questão do patriotismo ferido
  23. A lista – o personagem Jacó nos leva para a luta sindical, para o drama profissional de uma classe que não pode reclamar dos abusos que sofre, e em meio a tantos questionamentos ainda temos o aspecto religioso e o preconceito que parte da instituição, ou seja, de um coletivo, contra o indivíduo e suas escolhas íntimas.
  24. A sandinista – ingratidão, depois de dois anos pagando o jantar e admirando a moça mais durona que se tornaria ministra da habitação, esta não quis ou não pode, fato é que não foi cumprimentar o professor de anos de exílio. (Sandinismo é um movimento político nicaraguense pertencente ao espectro ideológico de esquerda, com tendência socialista, anti-imperialista e nacionalista, que promove a integração da América Latina. Baseia-se na ideologia de Augusto César Sandino, o chamado general de hombres libres, que leva seu nome. Os apoiantes e simpatizantes desse movimento são chamados de sandinistas.)
  25. Cenas de um sequestro – três cenas de três diferentes pontos de vista nos fazem entender a crueldade em que a família “subversiva” é submetida
  26. O filósofo e o comissário este conto parece mostrar, como alguns outros, inclusive, que o partido só reconhecia os erros e os punia também, claro; mas os acertos pouco eram notados, ainda que valessem muito para o movimento de resistência; ironia
  27. Tio Andréafastamento, pelas perguntas infantis vamos conhecendo a história do tio e da família, da opção que o tio tomou ao se isolar, ao dar espaço para os traumas da tortura que jamais revelou se agigantassem em seu ser
  28. Dr. Carlão a reviravolta dos cargos e posições, as mensagens secretas, o sigilo quebrado ao acaso, quando não existem acasos inocentes,

– É curioso como um mesmo espaço pode ser palco de situações tão diferentes, conforme o momento histórico.”