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As Meninas

Lygia Fagundes Telles

Lançado em 1973, no auge da ditadura militar, As Meninas é um dos romances mais famosos da escritora paulistana Lygia Fagundes Telles, tendo sido premiado com o Prêmio Jabuti, em 1974.  A União Brasileira de Escritores encaminhou à Academia Sueca a indicação de Lygia Fagundes Telles para o Prêmio Nobel de Literatura 2016 com unanimidade entre os diretores. Para Durval Goyos, presidente da instituição, “Lygia é a maior escritora brasileira viva e a qualidade de sua produção é inquestionável”.

Gostei logo de cara e li com relativa rapidez, acho que no máx. uns seis dias. Com uma técnica literária muito segura, a autora usa diferentes focos narrativos para contar a história de três universitárias que vivem em um pensionato: Lorena, Lia e Ana Clara. De enredo aparentemente simples, o contexto da obra nos revela implicações políticas, sociais e de gênero bastante ousadas e importantes para a época, mas ainda relevantes nos dias de hoje.

“É no trivial que está o trágico.”

Esse trio que forma as vozes do livro se alterna e se mistura, nos contando as problemáticas individuais das meninas aos poucos, pelas frestas das frases e dos acontecimentos. Há também uma voz narrativa mais gramatical que liga as partes, em discurso indireto, mas que em nenhum momento nos mostra mais do que as próprias meninas querem dizer. Ouvi algumas pessoas dizerem que acham a leitura difícil, confusa etc. Já eu, acredito que seja fácil identificar as vozes, pois há elementos de diferenciação bastante claros.

“Comecei a achar que Deus era simplesmente isso, um bricoleur de gente.”

O título merece atenção, achei que a Lygia foi totalmente feliz em sua escolha. Embora estejamos em contato com as histórias de jovens mulheres que cursam faculdade, têm independência social e traçam seus próprios destinos, o termo “meninas” lhes cai perfeitamente bem. Uma vez que mesmo ‘sabidas’, elas ainda sabem pouco e do pouco que sabem, criam todo um universo emocional, como fazem as meninas. E por ser um universo totalmente girlie, luluzinha até dizer chega, penso que algumas pessoas possam se cansar do fluxo de consciência, mas consegui me envolver sem nenhuma dificuldade. Aliás, esse livro pode ser super indicado para adolescentes.

“O horror que tenho de cueca, a começar pelo nome.”

Das três meninas, a minha favorita era Lorena. A personagem mais intelectual, sensível e articulada. Uma burguesinha complexada, virgem, idealizadora platônica e leitora voraz de romances, é ela quem aparece mais no livro, e a que interage melhor como as outras duas meninas, afinal seu dinheiro e sua influência funcionam como uma espécie de agente centralizador do grupo.

“Em meio das risadas notei qualquer coisa de dolorimento.”

Outra personagem é a Lião, apelido de Lia de Melo Schultz, que combinava-lhe muito bem, pois era a militante do grupo, a guerrilheira meio baiana meio alemã que se envolve com política de esquerda. Confesso que era uma personagem que me irritava um pouco por conta de um maneirismo que a Lygia soube usar muito bem na voz dela, tudo o que Lia dizia era acompanhando por uma interjeição “ô” e eu conheci algumas pessoas com essa mesma mania… Peguei cisma com Lia.

“Ana Clara contou que tinha um namorado que endoidava quando ela tirava os cílios postiços…”

E por fim, a terceira e problemática Ana Clara, chamada de Ana Turva pelas amigas. Ela é uma ruiva que aspira ascender na vida graças à sua beleza capa-de-revista, mas tem manias de grandeza, um passado tortuoso e traumático que a torna uma mentirosa compulsiva. Embora alegue ter um noivo rico, se envolve com um traficante e decai em um mundo de drogas e delírio, até que o inesperado lhe acontece.

“As ciganagens dos jovens têm qualquer coisa de heroísmo na falta de cálculo, no desprendimento.”

Abre-se então mais um viés por onde podemos analisar a amizade das meninas, pois o pensamento que fazem umas das outras não condiz com as atitudes que cada uma tem perante as amigas. As palavras e julgamentos se amenizam pessoalmente, como na vida real em sociedade. E eu acredito que esteja aí o segredo dos relacionamentos desta obra.

“Felicidade é isso é se preparar calculando tudo ponto por ponto. Estruturar.”

Minha edição veio com uma resenha de Cristóvão Tezza abarcando uma crítica tão excelente que depois dela parece não haver mais o que ser dito. Temos também um depoimento da própria Lygia, publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo no dia 12 de outubro de 1975, onde a autora menciona a importância de testemunhar e registrar determinado tempo.

“Liberdade é segurança.”

E, de fato, em certo momento da obra, a militante Lia lê um texto sobre as crueldades ocorridas durante a ditadura militar. Em um evento promovido pelo Itaú Cultural em 2011, Lygia conta que o relato lido pela personagem é, na verdade, a reprodução de um panfleto que denunciava as torturas sofridas. “E como poderia escrever um romance morno em pleno ano de 1970?”

“Não sei aguentar o sofrimento dos outros, entende?”

 


Outras Edições

Ah, preciso fazer uma ressalva quanto a capa desta edição que simplesmente não me pareceu ter nenhuma conexão com a temática do romance. Um barquinho de papel em uma sarjeta? Lembrei que a coleção feita pela Companhia das Letras está simplesmente bárbara, com obras a la Beatriz Milhazes nas capas. A coleção está mesmo linda:

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Adapção pro Cinema

Há também um filme inspirado na obra, também chamado As Meninas feito no ano 1995 e dirigido por Emiliano Ribeiro. Estrelando Adriana Esteves (Lorena), Drica Moraes (Lia) e Claudiz Liz (Ana Clara). No YouTube tem uma reprodução na íntegra. IMDB

 

 

 

 

 

 


Lygia Fagundes Telles 🇧🇷 (1923-), também conhecida como “a dama da literatura brasileira”, é uma escritora paulistana, considerada por acadêmicos, críticos e leitores uma das mais importantes e notáveis escritoras brasileiras do século XX e da história da literatura brasileira. Além de advogada, romancista e contista, Lygia tem grande representação no pós-modernismo, e suas obras retratam temas clássicos e universais como a morte, o amor, o medo e a loucura, além da fantasia.

Formas de Voltar Para Casa

Alejandro Zambra

Formas de volver a casa foi lançado no Chile em 2013 e é o terceiro livro de Zambra. No Brasil, a edição da Cosac Naify tem uma impressão convidativa, em papel texturizado formando um padrão meio labiríntico. A compra foi na Feira do Livro da USP, em 2015.

“Voltamos para casa e é como se regressássemos de uma guerra, mas de uma guerra que não terminou.”

A primeira coisa deste livro que me chamou a atenção foi o título. Qualquer pessoa que já tenha se perdido ou se afastado de casa por alguma razão sabe como pode ser difícil encontrar um caminho de retorno. Não se esquece a angústia do ‘não se ter para onde ir’, mas neste caso é o medo de não saber regressar que torna o caminho de volta à casa impossível.

“Há momentos em que não podemos, não sabemos nos perder.”

E foi justamente a busca por um trajeto que me levou a revisitar o Chile de 1985, quando um terremoto colocou o personagem principal, ainda menino, em contato com o conflito do romance. Um romance próprio, com formatos autorais, permeado de sinceros relatos da dificuldade de se encontrar de volta, de ver a si mesmo.

“Pensava que estar sozinho era uma espécie de castigo ou de doença.”

A narrativa se dá em duas partes: o passado, que o protagonista tenta recuperar para concluir um livro que está escrevendo no presente. Para compreender acontecimentos imprecisos de sua vida, ele percorre um melancólico e dolorido caminho de volta na tentativa de escrever sua própria história.

“Aprender a contar sua história como se não doesse.”

Como Alejandro Zambra é também professor de literatura e confessa na voz do personagem suas aflições literárias. Fica fácil relacionar a estruturação ao tom e ao ritmo empregados em Formas de Voltar Para Casa. Durante a leitura, às vezes, senti que este era um livro tipo-diário, escrito por um escritor para quem escreve, uma história contada ao acaso, como um relato literário em livro, mas desabafado da obrigação de ser metaliteratura, ainda que estruturada, seletiva e emocionada.

“Ler é cobrir a cara. E escrever é mostrá-la.”

Como se o autor ainda estivesse cansado do caminho percorrido, também me foi impossível não registrar um leve aborrecimento com o sempre-presente background político. Apesar da perspectiva “ilegítima” dos filhos que, em tese, deveria despertar meu interesse.

“Abandonamos um livro quando compreendemos que não era para nós.”

E se as questões políticas do tempo Pinochet hoje já estão resolvidas, o mesmo não acontece com a vida comum, a que se vive em casa, na intimidade quotidiana, e da qual se formam memórias por vezes incompreensíveis para os chilenos. O íntimo das personagens diante do horror da ditadura é o tema central.

“Por isso, um livro é sempre o reverso de outro livro imenso e estranho.
Um livro ilegível e genuíno que traduzimos, que traímos pelo hábito de uma prosa passável.”

Em certo ponto, o narrador chega à conclusão de que ninguém fala pelos outros, e que mesmo que queiramos contar histórias alheias, sempre acabamos contando a nossa história.

“É melhor não ser personagem de ninguém, digo. É melhor não aparecer em nenhum livro.”

Porém, mais que um livro sobre a ditadura, este é um livro sobre o lugar de origem, sobre Santiago dos anos oitenta, sobre pais e filhos, sobre o processo que enfrentamos quando tentamos buscar sentido no passado. Um livro sobre a infância, sobretudo, porque para o autor ditadura e infância sempre coincidiram. Não seria possível falar de uma sem falar da outra.

“O passado nunca deixa de doer, mas podemos ajudá-lo a encontrar um lugar diferente.”

Às vezes parece que o personagem viveu suspenso, como se estivesse esperando a história dos próprios pais e de toda uma geração superar a violência, que age das maneiras mais diversas possíveis. Também gostei muito das referências de Flaubert, Kawabata, Natália Ginzburg… E, em especial, uma poesia linda do próprio Zambra, na parte final do livro.

“Não deveríamos odiar a pessoa que nos ensinou, bem ou mal, a ler.”

O livro parece dizer mais do que realmente diz, muito embora na maioria das vezes eu não tenha sabido especificar o quê. Existem diversos motivos para se voltar para casa, inclusive para se voltar para a casa dos pais. Enquanto se é criança, saber voltar para casa é uma demonstração de maturidade necessária para se perceber um de sua própria vida; já enquanto adulto, voltar para a casa é um gesto humilde. Quando o narrador confronta o pai sobre seus ideais políticos podemos ver como  a volta a casa e ao passado pode ser dolorosa, e ao mesmo tempo como é necessário, pois voltar para casa é se redimir.

“Os pais abandonam os filhos.
Os filhos abandonam os pais.
Os pais protegem ou desprotegem, mas sempre desprotegem.
Os filhos ficam ou partem, mas sempre partem.”


Alejandro Zambra 🇨🇱 (1975-) é um escritor nascido em Santiago de Chile. Seus romances foram traduzidos para vinte idiomas e suas histórias apareceram em revistas como The New Yorker, The Paris Review, Granta e Harper’s. Foi bolsista da New York Public Library e recebeu, entre outras distinções, o English Pen Award, pela edição em inglês de Ways to return home, e o Prince Claus Award, na Holanda, por seu trabalho como um todo. Atualmente vive na Cidade do México. Livros: Bonsái (2006), La vida privada de los árboles (2007), Formas de volver a casa (2011), Poeta chileno (2020).