No final da primeira década dos anos 2000, Annie Ernaux recebeu um convite para participar da coleção Les Affranchis, que pede a escritores que façam a carta que nunca foi escrita. É este chamado do presente que a ajudará a abordar um tema difícil e dará à luz este, que talvez seja seu livro em diálogo mais direto com a psicanálise.

Aos dez anos, no verão de 1950, Ernaux escuta uma conversa da mãe com uma cliente e descobre que antes dela, seus pais tiveram outra filha, morta aos seis anos de difteria. A mãe relata à confidente que nunca contaram nada a Annie para não entristecê-la e emenda: “ela era mais boazinha do que aquela ali”.

A irmã mais velha jamais voltou a ser mencionada, exceto quando tias ou amigos deixavam escapar alguma lembrança. Desde aquele dia na infância, Ernaux também oculta seu conhecimento: “Tenho a impressão de que o silêncio nos convinha, a eles e a mim”. Mas as palavras de sua mãe calaram fundo na criança, e mais tarde na mulher, cuja obra é marcada pelo pensamento crítico e pela renúncia de uma moralidade limitadora de sua liberdade.

Nesse livro ocorre uma transformação importante: ele começa tratando a irmã como “a outra filha” e termina colocando ela própria neste lugar de outra, ou seja, ela se descola da família depois de ter percorrido o livro. O presente da escrita transforma o passado. (palavras da tradutora Marília Garcia)

É então nesta pseudocarta endereçada à irmã — à menina boazinha e espécie de santa — que a autora destrincha suas memórias e os significados que essa ausência sempre presente teve em sua vida, sua identidade e sua relação com os pais. Ernaux escreve frases breves e cortantes para lidar com a sombra de alguém que nunca conheceu e com a dor da comparação implícita. “Você é a própria impossibilidade do erro e do castigo”, diz à irmã. E vai além, conectando a morte dela com o próprio princípio de sua existência:

“eu vim ao mundo porque você morreu e eu te substituí”.

Em seu esforço para dar contornos a um fato impreciso de sua história, Ernaux hesita entre interpretar a morte da irmã como a gênese de seu destino de escritora ou como um mero dado biográfico. Sem resolver essa ambivalência, ela testa os limites da linguagem e, como de costume, reflete a respeito da própria escrita: 

“Você está fora da linguagem dos sentimentos e das emoções.
Você é a antilinguagem.”

Num jogo de espelhos, A outra filha evoca duplos como pulsões de morte e vida, sonho e realidade, revelações e tabus. Entretanto, a própria autora adverte que as matérias do inconsciente também têm a ver com a História e rejeita interpretações que não tenham em conta seu contexto. Para a vencedora do Nobel, atrelar memória, história privada e social é o único modo de escrever a vida.

Críticas

“Nesta curta e intensa história, por vezes perturbadora, Annie Ernaux não se permite complacências, não esconde nenhum dos sentimentos conturbados que a habitam, avalia com inteligência e delicadeza a extensão dos terremotos internos. Longe da ternura pela criança ausente (cuja ‘ressurreição’ ela, no entanto, tenta), ela expressa a inquietação diante dessa ‘irmã’ […]. Num estilo sóbrio, austero e de grande elegância, ela identifica os contornos da ausência e a distância intransponível entre ela e a irmã mais velha enterrada no subsolo muito perto de seus pais.” — La Croix


Annie Ernaux 🇫🇷 (1940–) nasceu em Lillebonne, na Normandia, e estudou nas universidades de Rouen e de Bordéus, Letras. Uma das vozes atuais mais importantes da literatura francesa, destaca-se por uma escrita onde se fundem autobiografia e sociologia, memória e história. Prémio de Língua Francesa (2008), o Marguerite Yourcenar (2017), o Formentor de las Letras (2019) e o Prince Pierre do Mónaco (2021) , destacam-se os seus livros Um Lugar ao Sol (1984) e Os Anos (2008), vencedor do Prémio Marguerite Duras e finalista do Prémio Man Booker Internacional. Em 2022 venceu o Prêmio Nobel de Literatura.