Jazz, bons amigos, o amor, uma flor que nasce no peito e muito surrealismo crítico. Esse é o mix temático de L’écume des Jour, publicado em 1947, na confusa e romântica França pós-guerra. Uma obra ao estilo art nouveau que marcou seu tempo, com méritos que vão além dos literários. Um livro que parece um sonho, todo feito de espuma. E logo no prólogo, o autor Boris Vian nos dá uma amostra da profundidade que vem a seguir:

“Na vida, o essencial é manter, sobre todas as coisas, julgamentos a priori. Parece, com efeito, que as massas estão erradas, e que os indivíduos sempre têm razão. É necessário ter cautela para não extrair disso regras de conduta: elas não precisam ser formuladas para que as sigamos.”

A edição mais recente de A Espuma dos Dias é de 2013, da Cosac Naify, com uma impressão caprichada, um formato confortável para ler e manusear, além de uma capa linda. A tradução é do Paulo Werneck.

“São as coisas que mudam, não as pessoas.”

Este livro de Boris Vian não pode ser lido sem música. São inúmeras as referências a Duke Ellington e outros compositores. O saxofone americano traz um ritmo romântico e delicioso para a leitura. A narrativa fica ainda mais fluída ao som do jazz escolhido por Colin, o primeiro personagem do sexteto de amigos a que somos apresentados.

“Estava quase sempre de bom humor e, no resto do tempo, dormia…”

“É devastador este sentimento de solidão. Exijo ficar apaixonado!”

Colin é um jovem de 21 anos que vive em Paris e tem uma vida confortável o bastante para não precisar trabalhar. Ele inventa objetos interessantíssimos, como o pianocoktail, que dependendo da combinação de notas tocadas, prepara drinks condizentes com a música. Se tocar uma nota errada, corre-se o risco de adicionar gema de ovo ao drink… Ou seja, um piano muito divertido e valioso, que posteriormente rende a Colin três mil dobrezões, que é a moeda usada.

“Sentou diante do pianocktail e começou a tocar o arranjo de Duke Ellington, aquele que possuía o mesmo nome de sua amada, Chloé. O drink ficou colorido, vivo, atraente, inigualável assim como a lembrança daquela noite.”

Tudo que Colin vive é compartilhado com seus amigos, Chick e Nicolas, este último sendo também seu chef. Os jantares, chás e bolos preparados por Nicolas são refestelados por Chick, um fanático seguidor de um filósofo. Amigo de Boris Vian, o filósofo Jean-Paul Sartre, é parodiado no personagem “Jean-Sol Partre”, ídolo-mor de Chick. Esse fanatismo intelectual o leva a gastar quantias enormes em livros e objetos  do filósofo, inclusive parte de um montante emprestado por Colin.

“Seu coração ocupava todo o espaço em seu peito,
e só agora ele se dava conta disso”

Há no livro também um certo envolvimento individual e sensual de Colin e da própria Chloé com Alise, a linda e loura namorada de Chick. A personagem de Alise é importante também para mostrar a medida do descontrole de Chick, que deveria usar o dinheiro emprestado para casar com sua amada, mas… Já dá para imaginar o que acontece, né? Já Nicolas faz par com Isis, formando o grupo de seis amigos que saem para patinar no gelo, fazer compras e ir a festas de aniversários de cachorrinhos… O clima de festa e diversão é efervescente e contagiante.

“Se você perder esse momento, tente outro, depois.
Se falhar, recomeçaremos.
Temos toda uma vida para dar certo”.

Colin e Chloé se casam com uma cerimônia importante, com diversas referências à religião católica. A cena do casamento, no filme, também é toda especial e repleta de simbolismos críticos à religião, ao sistema mercenário da igreja católica, seus costumes etc. Em dado momento, o Religioso diz que casará o casal que vencer uma corrida maluca pela igreja, então os dois casais partem em carrinhos em busca da chance de se casarem. São Colin e Chloé o casal que ganha a corrida, claro.

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No livro, Colin compra um carro muito caro, que será dirigido por Nicolas e levará os recém-casados para uma viagem de núpcias. Já no filme, o carro é uma impressionante limusine toda transparente. Nessa atmosfera de absoluta felicidade, da materialização da alegria, os três partem para o interior da França, equipados com todas as guloseimas necessárias para um piquenique especial.

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Porém, é justamente na viagem que Chloé começa a se sentir indisposta, com muito frio. O inverno é intenso e seu peito começa a doer. Nessa altura, já se instalara em seu pulmão direito um nenúfar, que é uma pequena flor aquática de extraordinária beleza e singularidade. O simbolismo, a meu ver, é feito em relação a um câncer. Chloé piora a cada dia e a viagem é abreviada. Na volta, um médico lhe examina e diagnostica. O tratamento será feito com flores, das mais diversas e variadas, de modo a inibir o crescimento do nenúfar.

“As floriculturas nunca têm portões de ferro. Ninguém quer roubar flores.”

Colin gasta toda a sua pequena fortuna comprando flores e mais flores para Chloé. Em dado momento ele precisa procurar emprego, pois não tem mais como se sustentar. A casa começa a ficar escurecida, como se estivesse no fundo de um lago.

“Ocupo meu tempo escurecendo os meus momentos mais iluminados porque a claridade me incomoda.”

Há também um camundongo que funciona como uma espécie de pet da casa e que acompanha todo o drama dos moradores, inclusive tentando ajudá-los, sem sucesso. O formato dos cômodos começa a mudar, a diminuir, gerando quase uma claustrofobia quando estamos lendo.

“Os discos também se desgastavam. Agora, em alguns deles dificilmente se reconhecia a melodia”

É nesse clima de pesar e tristeza que Colin arranja um emprego, seu ofício agora é dar más notícias as pessoas. Em certo dia, ele recebe uma ordem de serviço endereça a si mesmo. É então que fica sabendo que Chloé irá morrer.

Um romance sobre a amizade, sobre o amor e sobre a perda, ambientado em um clima de guerra e festa. O livro carrega uma crítica mordaz ao sistema industrial de produção bélica e ao sistema de arrecadação pública.


Adaptação para o Cinema

Adaptado pela primeira vez para o cinema por Charles Belmont, em 1968, le-ecume-de-joursA Espuma dos Dias (2013) ganhou nova versão, dirigida por Michel Gondry e estrelada por Romain Duris e Audrey Tautou – ambos estrelas do cinema francês, ambos já um pouco velhos para os papéis. A Espuma dos Dias é um filme que faz as metáforas da vida ganharem forma, luz e cor! Surreal, divertido, triste, este filme é uma experiência interessante, e nos oferece reflexões sobre a vida, morte, religião, política, amor, amizade etc. A fotografia é uma graça, sem contar a trilha sonora que, obviamente, traz Ellignton no comando. As cenas são tão lindas, tão especiais que acho que vale a reprodução de algumas aqui. Esse filme já está disponível no Netflix.a-espuma-dos-dias-2